Cavalgo Pegasus sobre o Mar Egeu. Anoitece. Um bordado de pérolas douradas debrua a túnica negra que cobre a linha da costa turca. Magnífica, exuberante. Digna de um sultão. Mas a profusão de luzes que percebo quando me aproximo da baía de Izmir nada tem a ver com o imaginário do Império Otomano. Celebram-se os 101 anos da República Turca. Homenageia-se o seu fundador: Kemal Atatürk. Procuro um adjetivo que transmita o sentimento do povo em relação a este homem. Não é fácil. Admirado, venerado, idolatrado.
Os turcos amam o herói que fizeram eterno e omnipresente. Daí a naturalidade com que, na semana que é oficialmente dedicada à sua figura e aos seus feitos, pessoas de todas as idades enverguem t-shirts com o seu rosto, com a sua assinatura e com a bandeira nacional. Daí que, por estes dias, o país se vista de vermelho e branco. Daí também que bandeiras de todos os tamanhos se agitem nas mãos das crianças, nos balões que seguram, em estendais que atravessam ruas e praças, nas fachadas dos prédios. Enormes. Orgulhosas. Vitoriosas. De frente para o mar, onde o inimigo foi derrotado.
A marginal é pequena para todos os que ali acorrem. Piqueniques regados a chá de maçã. Vendedores ambulantes. Milho e castanhas assadas. Gelados. Fritos envolvidos em mel. Sanduíches com queijo tulum, atravessadas por malaguetas verdes. Mexilhões que se engolem crus, regados com sumo de limão. Pevides de girassol. Bebidas frescas. Tabaco. Fuma-se imenso. Mais bandeiras. Bonés. Chapéus. Um desfile de carros antigos na estrada ao lado. O hino a sair das colunas. Do céu, a interrupção. Cinco caças executam acrobacias arrojadas. Riscam-no de vermelho e branco. Atravessam uma e outra vez a baía, de um lado ao outro. Como mãos que seguram um cordão e percorrem os furos de uma sapatilha até ao encontro das pontas. O nó, um enorme coração desenhado no céu. O público está ao rubro. Forma-se fila para comprar recordações dos Estrelas Turcas: canetas, camisolas, canecas. Mais adiante, um comerciante usa o seu melhor argumento para vender malas de contrafação a um turista que passa:
- My friend, happy wife, happy life!
No largo em frente, depositam-se flores aos pés da estátua de Atatürk. Canta-se. Dança-se. Regista-se o momento com o telemóvel. O herói, a cavalo, em pose de guerreiro, de frente para a baía, observa e incita. Uma mensagem de força e união. A memória viva da guerra a contrastar com a calma das águas e com o ar feliz das gentes.
Regresso ao hotel a pé. Percorro uma rua de prédios históricos e belos. Surpreende-me que o vulto de um homem que caminha de frente para mim atravesse a parede e desapareça. Percebo que ali existe um buraco. Que o ar glorioso do edifício é apenas uma fachada. À entrada do buraco, como em tantos outros existentes nos edifícios da cidade, foram colocados cartões com ração e recipientes com água. Os turcos cuidam dos gatos abandonados.
Mas um homem não é um gato.
Sílvia Quinteiro é professora
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