Boston Legal é outra das minhas séries favoritas. Foi transmitida entre outubro de 2004 e dezembro de 2008, mas creio que terei visto grande parte dos episódios só em 2010 (volta não volta, vou repetindo alguns). A ideia original é de David E. Kelley (que começou por ser advogado em Boston), que a produziu para televisão com a 20th Century Fox. Os protagonistas são dois advogados numa firma de «tubarões» jurídicos na cidade de Boston, capital do Estado de Massachussetts: Alan Shore, interpretado pelo magnífico James Spader, e Denny Crane, que William Shatner inventa, transformando-o no melhor papel da sua longa carreira televisiva – a qual incluiu um irrepreensível Capitão Kirk, na série O Caminho das Estrelas (transmitida nos EUA entre 1966 e 1969 e na RTP a partir de 1978). Os dois advogados de Boston Legal, ferozes e rigorosos na profissão, têm feitios absoluta e irreconciliavelmente incompatíveis; apesar disso, seria impossível viverem um sem o outro. Se os visse num diagrama, Crane, como indica o nome (que significa «cegonha», ou «guindaste»), apareceria na vertical, em alucinados picos de emoção: é ele quem reage a quente, quem pede em casamento mulheres que acaba de conhecer, quem atira primeiro e raramente pensa sobre o porquê de ter atirado. Shore, cujo nome remete para «margem», ou «praia», representaria terra firme e lisa. É constante, ponderado, um lugar seguro ou uma linha horizontal que cruza os incontidos saltos de Crane.
Denny Crane e Alan Shore não são companheiros de armas, porque são muito diferentes as batalhas jurídicas em que lutam (quantas vezes se opõem, como no episódio 20 da 4ª temporada). Só muito raramente são comuns, e, nessas poucas vezes, um bate-se só em favor do outro e não necessariamente por uma causa comum aos dois. Talvez o único «caso», não jurídico, em que ambos estavam do mesmo lado da barricada fosse a defesa do duelo que pretenderam travar pela igualdade no direito a dormir com Shirley Schmidt (a bela Candice Bergen). Mesmo aí, lutaram juntos para poderem combater um contra o outro. Noutros casos ainda, em que Shore defende o amigo, por exemplo, perante o Supremo Tribunal, o combate é quase sempre pela amizade que os une; e é sempre Shore, o sensato Shore, que abdica das suas convicções para defender Crane. Une-os uma admiração profissional comum, sim; várias vezes dormiram juntos também, companheiros só de sono – mas cada um é o favorito do outro, muito mais do que companheiro de armas.
Nas opções políticas também se confrontam: Denny é um republicano convicto e Shore um tolerante liberal a quem, regra geral, guia a racionalidade dos argumentos; o leme de Crane é o seu imenso fascínio egocêntrico – é ele quem diz de si mesmo que é “doido varrido” – e a preservação da sua imagem de guerreiro invencível (que a série apresenta em fase de declínio, pontuado por momentâneos e fulgurosos ressurgimentos). A amizade dos dois, o seu grande e belo feito, existe e consolida-se para lá e apesar dos feitios de cada um, não por causa deles. É essa a razão por que ultrapassam tudo, mesmo as mais profundas divergências de fé política (e religiosa), os gostos mais elementares e as conquistas amorosas. Só poderiam acabar casados.
NOTA: No episódio 4 da terceira temporada, quando Crane e Shore lutam entre si pelo direito a dormir (entenda-se, ter sexo) com Shirley Schmidt, esta, incrédula com a ideia, confronta-os. Na resposta, Shore defende o argumento da emotividade e dos poderes carnais numa sociedade que favorece o declínio dos instintos e das emoções, e pede a Schmidt que imagine como pode ser excitante ver dois homens “in their sexual... ok, Twilight”, prestes a debaterem-se pelo direito a aninharem-se no colo dela. A legenda em português mostrou “dois homens na 'Quinta Dimensão'”, o que me deixou de cara à banda, a pensar que, onde quer que seja, a Quinta Dimensão talvez seja um lugar mais... interessante...?, do que qualquer crepúsculo sexual.
Ana Isabel Soares é professora
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Foto: Vasco Célio