Eu sou a dureza desses morros
revestidos,
enflorados,
lascados a machado,
lanhados, lacerados.
Queimados pelo fogo
Pastados
Calcinados
e renascidos.
Cora Coralina

Tenho uma amiga muito querida que um dia me disse: não pretendo fazer plástica porque cada ruga conta uma história. Admiro-a por isso e por muitas mais coisas, no entanto não sei se quero, no meu rosto, tanta história. Envelhecer não é fácil, pelo menos para grande parte das pessoas e, posso falar por mim, é um assunto que me assusta, mesmo já estando na tal meia-idade, se considerarmos que uma idade cheia corresponde a 100 anos. Lembro-me da primeira vez em que fui tratada por senhora. Quase tive uma coisinha ruim. Estava numa aula de pilates e eis que a professora se vira para a turma e diz: aquela senhora ali atrás não esteve na última aula. Eu olhei para trás, onde só estava o espelho e dei-me conta de que a senhora era eu! Na altura tinha 40 e poucos, na flor da juventude e vem aquela criatura tratar-me por senhora. Foi um duro golpe na minha vaidade, pois todos queremos ser, ou aparentar, uma juventude que, sabemos, tem data de validade. Quando entrei na menopausa meu ginecologista disse que eu estava a entrar no outono da vida. Troquei de ginecologista. Sei que a minha troca não significa que eu não esteja no outono, ou beirando o inverno ou qualquer que seja a estação que indique que já estou na metade da minha vida (sim, porque pretendo passar dos 100). Mas a troca significa, para mim, resistência. Resistência em aceitar a idade, apesar de não parar os sinais da velhice que vão aparecer, pois o tempo, e as marcas de senilidade, não perdoam. Quando a minha mãe estava no hospital, na semana antes de morrer, estive com ela. Fui falar com as enfermeiras, porque ela queria sair da cama e ouço-as perguntar se era a velhinha do 705. Minha mãe jamais encarnou este epíteto – velhinha. Pode ter envelhecido, mas fê-lo com muita classe até qua a doença tirasse de si a possibilidade de responder, como ela certamente faria, cheia de sarcasmo, mas com muito bom-humor, que velhinha devia ser a senhora mãe das enfermeiras. Apesar de ela ter sempre brincado com a ideia da idade. Um dia lhe perguntaram quantos anos ela tinha, ao que respondeu: meu filho, eu sou tão velha que fui garçonete da ceia larga! Provavelmente o perguntador não fazia ideia do que era a ceia larga (ou Santa Ceia), porque a idade nunca lhe tirou a inteligência e a sagacidade. Mas não sou minha mãe, apesar de muitas vezes vê-la sair da minha boca quando falo com o filho. Não tenho bom humor ao responder quantos anos faço ou fiz. Sei que numa hora qualquer hei de me reconciliar com isso, a tal idade, mas por enquanto, alimento essa querela, resistindo. Ainda não fiz plásticas, mas não sou avessa à ideia de vir a fazê-las. E não é pela imagem que projeto para fora, mas é pela imagem que vejo ao espelho e que se recusa, firmemente, a ser uma senhora. Ou a estar em pleno outono da vida.

Mirian Tavares é professora

Crónica publicada em:

Foto: Isa Mestre