A recente alteração jurídica para possibilitar a conversão de terrenos rústicos em urbanos (já promulgada pelo Sr. Presidente da República), é um retrocesso de décadas em matéria de ordenamento do território e conservação de solos. Denota, alem disso, uma evidente falta de vontade e coragem em resolver os problemas estruturais das zonas urbanas. Numa altura em que se fala de necessidade premente em conservar solos e reduzir a sua impermeabilização, de promover a mobilidade sustentável nas cidades, em criar mais espaços verdes, reduzir as perdas de água e os excessos no seu consumo, ou ainda em promover formas harmoniosas de urbanização perante o flagelo das alterações climáticas, o governo surge com uma iniciativa contraditória para resolver o grave problema da habitação. Eis porque assim é:

1. Está demonstrado, estatisticamente, que a área urbana disponível actualmente em Portugal é mais do que suficiente para acolher milhares de novos fogos habitacionais e que, além disso, existem mais de 700 mil habitações vazias ou devolutas. Quem o refere são os especialistas, os censos nacionais e o próprio Relatório do Estado do Ordenamento do Território. Não são percepções, como muito se diz ultimamente. Como tal, a criação de um diploma desta natureza é um contrasenso;

2. Esta situação roça mesmo o absurdo. Existem milhares de casas vazias a degradar-se no centro das cidades ou nas aldeias do interior – havendo, até, aldeias inteiras abandonadas! – e, em vez de se corrigir esta grave realidade, pretende-se priorizar a construção de novas edificações em zonas rurais, por ventura dispersas, bem como a expansão das cidades para os arrabaldes, deixando os centros a desmoronar-se e a morrer. Fará isto algum sentido? Obviamente que não;

3. A referência aos ditos «preços moderados» é outro exemplo da falácia propalada com este diploma. Segundo o mesmo, será exigida a construção de habitação a custos moderados em 70 por cento das parcelas, mas permitindo uma margem que pode ascender até 125 por cento face à mediana do custo m2 da região em causa. Em vários concelhos do Algarve, por exemplo, uma habitação de 100m2 pode subir bem acima dos 400 mil euros. É este um «preço moderado» para famílias de classe média?

Esta iniciativa poderia fazer sentido caso se aplicasse exclusivamente a terrenos na posse do Estado ou dos municípios, em situações devidamente justificadas e em zonas contíguas a solos urbanos. Assim não haveria especulação e permitiria um olhar sobre o território mais cuidado e planeado, sem a interferência dos lobbies da construção. Curiosamente, isso existia no anterior regime jurídico, aprovado no início de 2024 e agora alterado.

Como já vários especialistas nesta matéria referiram, esta alteração ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial pode abrir uma Caixa de Pandora sem percebermos na globalidade os seus efeitos. Há um que antevejo com séria preocupação: a conversão dos terrenos rurais onde já se tenham instalado casas de madeira, amovíveis ou não, barracas e afins. Isso resolveria «a chatice» dos processos de contra-ordenação em curso derivados de inúmeras denúncias que chegam aos municípios por cidadãos preocupados com aquilo que é hoje uma favelização do espaço rural. Espero, muito honestamente, que tal não aconteça. Seria a normalização do crime ambiental e premiaria os infratores.

Se o problema da Habitação é efectivamente uma emergência nacional, os governantes devem assumi-lo como tal e agir com coragem, criatividade e capacidade efectiva de acção. Algumas sugestões: começar por resolver o problema dos milhares de edifícios abandonados e a desfazer-se nas cidades. Como? Aumentar significativamente os impostos sobre esses imóveis para que os proprietários tomem iniciativa em fazer algo por eles; facilitar, apoiar e incentivar a resolução dos problemas associados à sucessão de bens e heranças. Sabemos que este é um problema complexo, associado a propriedades divididas em múltiplas parcelas, muitas vezes ainda por cadastrar ou legalizar, com desentendimentos familiares e assim permanecendo décadas; estabelecer períodos máximos de tempo para que estas situações se resolvam e organizem administrativamente; e, por fim, adquirindo propriedades, recorrendo em último caso à expropriação. As administrações têm ferramentas legais para o fazer. E há quem assim o esteja a fazer. Há municípios no Norte e Centro a adquirir casas devolutas e em ruínas nas aldeias, a recuperá-las e a colocá-las no mercado de arrendamento a preços controlados. Portanto, soluções, mesmo que pequenas, existem. É preciso vontade e coragem em implementá-las.

Descurar décadas de conhecimento técnico e científico de planeamento e regulação territorial em prole de uma medida claramente duvidosa e perigosa não é uma boa solução. Como também não é o afrouxar das exigências ambientais pela urgência em executar o PRR. Sabia-se, desde o início, que a grande dificuldade a ultrapassar na implementação deste e outros programas financeiros seria a ineficiência da máquina administrativa. Foram vários os avisos. Pouco ou nada foi feito para a reformar e o resultado está à vista. Veremos até quando.

Votos de um excelente 2025!

João Ministro é engenheiro do ambiente e empresário

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