Quarteira anos 70. Na famosa esplanada de Quarteira, hoje Praça de Mar, acontecia um espetáculo organizado pelo cantor e empresário José Cheta onde iriam desfilar vários artistas.

Eu fazia parte do elenco, tendo sido convidado para abrir o concerto executando dois instrumentais em acordeão.

Ainda antes de começar e na zona dos camarins, eis que a minha atenção é atraída por um diálogo entre um dos cantores que iria participar no espetáculo e um outro indivíduo.

Dizia o cantor enquanto segurava umas cassetes: Esta tem voz, mas a outra é só instrumental e portanto aqui eu canto…. Está aqui tudo escrito no alinhamento a ordem em que as tens de pôr.

Que confusão para mim moço iberbe naquele mundo e, de repente, na minha cabeça cresceu uma azáfama de questões: Então só canta algumas músicas e as outras apenas finge cantar?

Passados uns bons pares de anos e numa digressão que fiz pelo continente australiano, na cidade de Brisbane contaram-me que, num concerto no mesmo auditório onde atuei, anos antes aquele mesmo cantor em plena atuação e ao tentar passar o microfone de uma mão para outra (gesto que era comum nas suas atuações), acabou por deixar cair o mesmo, tendo no sistema sonoro continuado a ouvir-se a sua voz enquanto ele se baixava, tentando desesperadamente agarrar o microfone. Tal situação provocou uma gargalhada geral, tendo mesmo várias pessoas (sobretudo estrangeiros) abandonado a sala ao se sentirem enganadas.

O surreal da questão é que este cantor até cantava muito bem, mas, como um dia mais tarde me confidenciou quando lhe pus a questão, é que quando cantava num concerto estava sempre a pensar no seguinte e, como tal, havia de defender a voz, não fosse enrouquecer. Se utilizava tal estratagema qual o problema de enrouquecer….?

Cantar bem e afinado nos discos/cd sempre foi fácil, pois no estúdio as máquinas tratam de tudo corrigir. O playback total foi o modo que se adotou para tudo bem sair depois nos espetáculos que se seguiam ao lançamento dos discos (não precisas de cantar, nem sequer assobiar, com certeza que não vais desafinar...), só que o público cansou-se de ver apenas o cantor no palco acompanhado da cassete (nem mesmo com o recurso a bailarinas?) e começou a exigir a presença dos músicos. Ora aí a respetiva cassete/cd/minidisco, etc. deixou de fazer sentido. E agora? Como acertar a voz com os músicos que tocam afinadinhos? Como fazê-los tocar desafinados no momento em que o cantor também o faz? Não é possível. Mas… MILAGRE !!!! Eis que acontece a salvação… Inventou-se o Auto Tune, um aparelho afinador automático por onde passa a voz antes de chegar ao público e assim podermos continuar a enganar o Zé Povinho que já fica satisfeito se bater muitas palmas.

Aí está a continuação na rua do trabalho (desonesto) de estúdio.

Esta é uma prática utilizada sobretudo pelos cantores da área pop/rock, onde segundo os promotores o saber cantar é o menos importante para um cantor, pois a imagem é que é importante para vender o produto.

E no fado isso não acontece? Pode perfeitamente acontecer, mas não é prática corrente. Vale a pena referir algumas «barracas» protagonizadas por uma fadista do nosso mercado, de onde de vez em quando vêm cá para fora momentos nada abonatórios, situações estas muito divulgadas nas redes sociais.

Mesmo assim prefiro ouvir de vez em quando uma ou duas «ao lado», do que sentir que estou a ser enganado por pseudo cantores que de talento apenas têm a maneira como se vestem e maquilham.

Valentim Filipe é músico, professor aposentado e dirigente associativo

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