
A mim que desde a infância venho vindo
como se o meu destino
fosse o exato destino de uma estrela
apelam incríveis coisas:
pintar as unhas, descobrir a nuca,
piscar os olhos, beber.
Tomo o nome de Deus num vão.
Descobri que a seu tempo
vão me chorar e esquecer.
(...)
o céu é bruma, está frio, estou feia,
acabo de receber um beijo pelo correio.
Quarenta anos: não quero faca nem queijo. Quero a fome.
Adélia Prado
Aos 40 anos eu tinha toda a fome do mundo. Fome de viver, de devorar tudo, de sair, de dançar. Um dia eu, literalmente, furei um sapato durante uma noite, que se estendeu até a manhã cedo, em que dancei – desmontando a pouco e pouco os meus parceiros, que iam desistindo e sendo logo substituídos por outros mais resistentes. Eu tinha 40 anos e todos os sonhos do mundo. E tempo – pensava que tinha tempo. Que os 40 eram uma nova juventude, mais sábia e menos angustiada. Apesar do tempo que julgava ter, e que de facto tive, gastava muitas horas a tentar não perder tempo. Tudo tinha de se resolver para ontem. Nada de atrasos, nada de pausas. A vida, pessoal e profissional, era uma corrida de sprint: sempre veloz. O tempo, que parecia muito, reduzia-se a quase nada. Faltava tempo para nada fazer, que é quando ele, o tempo, dura mais. Quando se deleita em retorcer-se devagar, em espreguiçar-se lentamente, em dissolver-se ao longo de um dia que pode durar anos. Quando damos tempo ao tempo, temos a sensação de permanência e de duração. Mas eu andava a correr, a responder a emails, a fazer e a responder a mil telefonemas, a aceitar e a recusar convites, a trabalhar toda a semana sem reservar tempo para os afetos, para as pessoas, para aquilo, ou melhor, para aqueles que verdadeiramente merecem todo o nosso tempo. Alguém entrava no meu gabinete e eu não parava de trabalhar, conseguia, naquela época, ser verdadeiramente multifunções. E razoavelmente mal-educada. Quando alguém nos entra pela porta adentro, temos de lhe dedicar atenção. Porque estamos ali, naquele instante único, próximos, presentes. Mas isso, do tempo, só fui aprendendo mais tarde, quando cheguei aos 50. Quando concluí que nenhum trabalho do mundo pode estragar o tempo que dedicamos aos nossos, às pessoas que nos são caras. À casa, aos livros, aos filmes, ao nada fazer. Aprendi a não responder a emails depois da hora de trabalho, nem aos fins de semana. A viajar sem culpas, estando de férias, e a me concentrar numa coisa de cada vez. Talvez seja do peso da idade. Talvez esteja a tornar-me mais sábia. O certo é que, a cada dia, valorizo mais o tempo que escorre lentamente. Lembro-me de uma viagem, era janeiro e o trigo apenas uma promessa. O campo verde estava à espera. As cegonhas voavam noutras paragens. Via, ao longe, os ninhos, alguns já desfeitos, empoleirados nas torres altas de eletricidade. O vento soprava devagarinho, sem pressa, e caía uma chuva fina. A paisagem parecia melancólica. Dei-me conta de que gostava desta melancolia, deste tempo recolhido, dos campos ainda prenhes do trigo. Do tempo da espera. Que espera a Primavera, as cegonhas que retornam, as cerejas que se anunciam. O tempo das cerejas é curto. Mais longa é a nossa espera. E vou aprendendo a esperar.
Mirian Tavares é professora
Crónica publicada em:
Foto: Isa Mestre