A idade é uma coisa tramada. À medida que os anos avançam, ficamos com cada vez menos paciência para certas coisas. Aquilo que antes nos incomodava um bocadinho transforma-se numa irritação difícil de conter.
E há tanta coisa que me irrita no Dia da Mulher. Desde logo, o facto de se confundir este dia com o igualmente insuportável Dia de São Valentim: as flores acompanhadas de falinhas mansas, o paternalismo com que nos colocam uma gerbera na mão, o tonzinho mavioso do “Feliz Dia da Mulher”, como se as mulheres precisassem de flores, de palavrinhas mansas, do ar de engate barato.
Mas o pior nem sequer é a assunção, por parte dos homens, de que um pequeno-almoço levado à cama uma vez por ano é sinónimo de respeito. O pior é as mulheres também acreditarem nisso. É aceitarem as flores, os chocolates, as prendinhas, como se fossem crianças felizes com um presentinho de Natal.
O Dia da Mulher é uma data política. Assinala a luta das mulheres pela igualdade de direitos. E pergunto-me: em que momento se começou a entender que a paridade, ou a luta pela mesma, passa por sair uma noite por ano para ir ver strip masculino? Quando foi que a exploração do corpo dos filhos das outras mulheres passou a ser uma forma de reivindicação ou de celebração dos nossos direitos?
Todas as mulheres são, em maior ou menor grau, vítimas de uma sociedade na qual, mesmo que teoricamente extinta, a discriminação em função do género é uma realidade. Não é preciso falar de situações extremas como o feminicídio ou a violência doméstica.
Há alguns anos, no meu posto de trabalho, um «cavalheiro» a quem sempre evitei dirigir a palavra perguntou-me:
— Como está a menina?
Respondi-lhe afavelmente:
— Ótima. E o menino?
Seguiu-se um amuo muito adulto, que durou décadas. O dito cavalheiro ficou ofendidíssimo por ser tratado por «menino». Vá-se lá entender.
Mais ou menos na mesma altura, numa reunião em que eu, ainda muito jovem, era a única mulher presente, um «senhor» disse que um outro estava a ser perseguido “só porque tinha dado umas bofetadas na mulher”. Na verdade, não usou a palavra «mulher», mas mantenhamos o nível que lhe falta.
Fez-se silêncio. Os restantes homens presentes na sala olharam para mim e ficaram sem saber muito bem como reagir. Passou-se adiante, fingindo-se que ninguém tinha ouvido. Fiquei sempre com a impressão de que teriam dado umas valentes gargalhadas e anuído, não estivesse lá este empecilho. Já o dito par de jarras — o que deu as bofetadas e o amigo — continuaram em lugares de destaque. Pilares da sociedade. Uns campeões!
Se me chocam estas figuras pouco dignas de que lhes chamem homens? Chocam. Mas choca-me bastante mais que as mulheres, as inúmeras mulheres que sabem destas e doutras histórias, pululem à volta deles. Que os bajulem. Que conspirem com eles. Que façam panelinha. Que, em troca de um favorzinho, traiam as mulheres que eles espezinham. Que se rebaixem e, com elas, rebaixem todas as mulheres.
Choca-me, sobretudo, que sejam essas as primeiras a intitularem-se feministas. A aparecerem em público, sem vergonha de citar quem lutou e se sacrificou, como se estivessem à altura. De florzinha na mão, num jantar de «meninas» — como se tratam a si próprias — repetindo a abominável infantilização das mulheres pelos homens. Tristes figuras, num triste Carnaval.
Sílvia Quinteiro é professora
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