Foi um tempo raro, o Verão de 2020. Começou antes de ser, era ainda maio e andava eu (andávamos muitos, os que a doença não derrotou) a sair da toca. Dias de reencontros, reabraços, de sorrisos largos, da bondade da presença. Pleno Verão e era quase o começo de outubro, prolongava os dias de estar com as pessoas, os amigos de antes e os que conhecia naqueles momentos. Um deles foi o Francisco Guedes, um dos tripés da coleção 12catorze da editora húmus, que aceitara publicar um livrinho que eu escrevera, e que eu ia conhecer, num belo almoço em Matosinhos, na «Antiga Casa Castanheira». Já eu estava feliz por ter a ocasião de cumprimentar de viva voz aquela pessoa, de que só sabia o nome, quando me apercebi de que era ele, além do mais, autor dos meus livros de cozinha preferidos: os mais usados, os mais manuseados, os que tenho mais perto do fogão, por serem breves, sem rodriguinhos nem enfeites, folhas de riscar neles o lápis, capas sem pretensão: uma pequenina coleção em que cada volume é dedicado a uma região de Portugal (julgo que apenas continental). À Mesa no Alentejo, À Mesa no Minho, À Mesa nas Beiras, À Mesa Algarve, À Mesa Trás-os-Montes, À Mesa Estremadura (assim mesmo, uns com preposição e artigo, outros a dispensá-los), outro do mesmo formato, mas desenho de capa diferente, com o claro título Bacalhau de Cem Maneiras. Todos da mesma autoria: Francisco Guedes. Preparei-me, pois, para o encontro, com muito pouco de bagagem literária e levei de Faro para o Porto o peso mínimo daqueles caderninhos de receitas que o Público editara em 1996 e 1997 e que estão comigo desde essa altura. Deixei em casa, porque a autoria era de uma «Dulce Salgado», um oitavo volume, de receitas de petiscos, chamado Depressa e Bem. Conhecer um editor era uma boa razão para subir ao Norte – mas conhecer o autor daquelas preciosidades que me viam a preparar o comer, que me confirmavam sequências e ingredientes, ou com as quais debatia diferenças entre o meu saber e o que nas páginas me aparecia, isso sim, tornava-me a viagem verdadeiramente especial. De bónus, o Francisco oferecia-se para me dar boleia desde o centro do Porto, onde eu estava alojada (perto da belíssima Capela das Almas). Combinámos que o ponto de encontro seria na esquina da Sá da Bandeira com a Rua de Fernandes Tomás, do lado do largo, e lá o esperei. Quando vi chegar um carro idêntico ao meu (o mesmo modelo, o mesmo ano, a mesma cor, as mesmas rugas) e me apercebi de que era o Francisco que o guiava, exultei – e a nossa conversa, logo alegre, logo familiar, começou por aí, pelos automóveis e pelo gosto de conduzir, pelos lugares onde já nos tinham levado os carros 
que conduzíamos. Quando chegámos ao restaurante, esperámos quase meia hora pelos outros convivas: eu sentia-me a mais privilegiada do planeta, porque tinha ali, uns instantes, só para mim aquele herói. Falou-se de tudo, de coisas mínimas e dos grandes assuntos do mundo, de doenças, de guerras, e da magia de ser avô. Que pessoa!, pensava eu, que momentos tão largos num momento tão breve! O Francisco assinou cada um dos livrinhos que levei, dedicou com palavras diferentes cada um deles, enquanto conversávamos, sem perder jamais o sorriso de rosto inteiro. No final, disse-me que só ali faltava um, uma brincadeira em que se metera com uma amiga nas tardes de um Verão e para o qual tinham decidido inventar um pseudónimo que dava conta da autoria dupla e da qualidade dos comeres que se descreviam, petiscos doces e petiscos salgados. A vida é mesmo isto tudo, querido Francisco: os entusiasmos e as distrações, os ganhos e as perdas, o lado doce dos encontros e o lado mais áspero das despedidas que não se querem.

Ana Isabel Soares é professora

Crónica publicada em:

Foto: Vasco Célio

NOTA: A editora húmus fez publicar em 2020, precisamente na coleção 12catorze (inaugurada nesse ano), ainda um outro livro de receitas de Francisco Guedes: Sopas, Açordas e Migas: 123 receitas da cozinha portuguesa).