Uma pessoa sabe lá o que a faz gostar de um filme. Por estes dias, aconteceu mais uma das muito mediáticas cerimónias da entrega de prémios da Academia de Hollywood – a festa da maior indústria ocidental de cinema, que já fez correr rios de tinta das rotativas das revistas de entretenimento e agora faz correr sequências numéricas de informação traduzida em imagens cheias de lantejoulas, rendas e outros enfeites luzidos. Conta a mitologia que os prémios se chamam Óscares porque uma antiga funcionária da Academia terá comentado, ao ver a estatueta que seria entregue aos de reconhecido mérito cinematográfico, que dava ares ao seu tio Óscar. Seja. Duvido que, mesmo entre os habitués da gala anual, se saiba quem era esse tal tio (ou a sobrinha que apadrinhou o prémio). Mas um Óscar é um Óscar, e esse talvez haja pouca gente no mundo, mesmo entre quem não visita as salas de cinema, que lhe desconheça os contornos. Outro fenómeno curioso é que, se o prémio para o melhor filme pode render bilheteiras chorudas, o negócio tem uma visibilidade particular em se tratando do Óscar dos melhores atores e atrizes (vá, até aos atores e atrizes secundários): é ver as revistas (perdão, os perfis de redes sociais das revistas) a faturar desde antes das nomeações, a torcer por uma ou outra figura, e as ditas cujas figuras a faturar em contratos com outros ramos que alimentam esta roda insana, a moda em roupa, em joias, em relógios e sapatos, enfim, um sem fim de produtos tanto mais apetecíveis quanto menos úteis ou necessários. O que faz uma pessoa gostar de um filme está longe de ter alguma coisa a ver com esta girandola – mas tem, muito provavelmente, a ver com atrizes e atores: com as pessoas que, no sentido mais literal (o que acontece no cinema como no teatro), dão corpo às personagens das histórias que vemos no ecrã.

A mim, encanta-me sempre que descubro um novo ator, ou uma nova atriz. Ou então, quando só chegada a meio de um filme percebo que determinada personagem é uma atriz que já vira incontáveis vezes, que até admirava muito, mas que se transforma a tal ponto (e não se trata necessariamente de transformações de caracterização, figurino ou maquilhagem, ou pelo menos não apenas a esse nível). Deve ser a novidade que me encanta, a surpresa. De todas as vezes que viu um filme de Bruno Dumont, senti alguma surpresa. Um dos que mais me deixaram com o sabor do espanto e da novidade, conseguiu-o através da intriga, dos cenários (as gravações foram feitas nos lugares, não em estúdio), da banda sonora, da fotografia, de um certo sentido de coreografia do conjuntos (porque são muitos os intérpretes que contracenam) – mas, acima de tudo, o que me deixou estupefacta, extasiada, feliz, com a descoberta em Ma Loute quando o vi numa noite de Verão no pátio da Sé de Faro, a lua quase cheia a entranhar-se nas nuvens e a tela animada pela aragem da noite e pelo vento que parecia soprar desde costa norte da França, foi uma atriz em particular. Talvez fosse à espera de desconhecidos – afinal, L’Humanité, o filme de Bruno Dumond que eu vira antes de Ma Loute, não tinha no cartaz nomes sonantes. Certo é que as aventuras extravagantes e inesperadas de uma família de veraneantes no começo do século XX, as investigações de dois polícias perante uma série de misteriosos desaparecimentos e a vida, a dura, canibalesca vida, da escassa gente do quartier St. Michel me apareciam a traços tão burlescos que as caricaturas ocultavam quem as interpretava. E foi só a meio do filme, já depois de me habituar aos rostos perturbadores de Raph e de Brandon Lavieville (e do seu pai, Thierry Lavieville), à areia e ao cascalho da praia ventosa, às tempestades e ao céu azul, à melodia de Guillaume Lekeu – e ao Typhonium, a mansão cujo nome homenageia o tifo que levou o jovem compositor belga, que consegui confirmar (o que é uma maneira de repetidamente descobrir), que o talento com que uma das mais histriónicas personagens me marcava era o de Juliette Binoche.

Ana Isabel Soares é professora

Crónica publicada em:

Foto: Vasco Célio