Há uns dias, passou numa das salas da Cinemateca Portuguesa o filme Trás-os-Montes, que António Reis e Margarida Cordeiro realizaram em 1976. Passou na cópia restaurada pela Cinemateca em 2008. Lembrei-me da primeira vez que o vi, numa sessão que o Cineclube de Faro organizou em homenagem aos dois realizadores, aquando do lançamento do belo catálogo A Poesia da Terra (quando se reeditará...?), pelos idos de 1997. Lembrei-me que, dessa vez, quase não lhe percebi as palavras, que nesse filme são tão importantes, mas que me senti inebriada pelas imagens, pelos sons ambiente, pelas vozes das pessoas de lugares que, naquela altura, eram ainda mais remotos do que hoje são. O restauro da Cinemateca clarificou algumas das frases, mas as grandes melhorias estão na imagem, cujas cores surgem menos esbatidas, avivadas.

Com restauro ou sem restauro, todas as vezes que vi Trás-os-Montes, vi cenas que me parecem estar nele pela primeira vez: é intrigante, ou talvez seja apenas uma espécie de efeito mágico de olhar para um lugar que já não existe assim, que porventura jamais existiu como o viram os olhos de Margarida e de António. Ou pode ser que seja a minha má memória.

André Bazin escreve a certa altura, num texto curto sobre L'Espoir, livro de André Malraux, acerca de uma diferença que pressente entre livros e filmes: “Une phrase absconse se relit, une séquence trop elliptique est définitivement perdue”. (Qualquer coisa como: “uma frase obscura pode ser relida [para se lhe apanhar o sentido]; mas uma sequência elíptica perde-se para sempre”.) Bazin escrevia em 1945[1], ou seja, na era pré-vídeo, quando ver um filme significava vê-lo numa sala de cinema, sem a possibilidade de fazer parar a fita (sim, no tempo da «fita», que dá nome aos «filmes») e voltar atrás). Trás-os-Montes é, muito, um filme de elipses, de sentidos inesperados, inusitados. É um filme que me resgata dos entendimentos habituais e me atira para reinos desconhecidos e maravilhosos. É muito fácil perder sequências e vê-las, numa revisão, como se pela vez inaugural. Lembro-me de o ter visto com um grupo de pessoas e, entre todas, à saída da sessão, tínhamos memórias diferentes do que acabáramos de ver: cenas que uns afiançavam ter visto e outros de modo nenhum se recordavam. Mexe com a cabeça de quem vê.

O ensaio de Bazin sugere que o cinema (visto como se via em 1945), ao contrário do que se pensava, não era uma arte elíptica, mas uma expressão que “não aguenta a descontinuidade. Apesar da sua estrutura retalhada em ‘planos’,” afirma, “o discurso cinematográfico tende cada vez mais a evitar a ruptura”. Penso na minha experiência com Trás-os-Montes (aliás, provavelmente com todos os outros filmes de António Reis e Margarida Cordeiro) e concluo que Bazin está certo: é quem vê que instaura nos filmes as cisões, as elipses, rasgões no tecido da narração. Nada disso está neles.

Ana Isabel Soares é professora

Crónica publicada em:

Foto: Vasco Célio

[1] O ensaio chama-se «A propos de l'Espoir ou Du style au cinéma», e foi publicado na revista Poésie 45 (nºs 26-27, ago-set 1945, pp. 125-133).