Estou atrás
do despojamento mais inteiro
da simplicidade mais erma
da palavra mais recém-nascida
do inteiro mais despojado
do ermo mais simples
do nascimento a mais da palavra.
Ana Cristina Cesar
Escrevo desde que aprendi as letras, a magia de juntá-las, as palavras que surgiam e seus significados e sons, nem sempre fáceis de se reconhecer. Lembro-me da amiga que lia as histórias do Pateta, condensadas num livro de capa dura verde-alface. Quando ela lia, aparecia uma palavra que não estava lá. Eu olhava o texto, procurava a palavra e confirmava - não estava lá. Um dia perguntei-lhe de onde ela tirava aquela palavra e ela disse: do texto. Está aqui: etc. Não sabia que aquelas três letrinhas se transformavam, quando lidas, numa palavra: et cetera. Achei bonito. Comecei a caçar sentidos e também palavras que surgiam de siglas, de resquícios do latim, do aprendizado. Resolvi escrever um diário que logo se transformou num panfleto. Eu era revolucionária desde os 4 anos, graças aos irmãos que ouviam canções de protesto e que liam obras de autores de esquerda. O Brasil, e parte da América do Sul, vivia sob ditadura e era preciso resistir. Algumas obras circulavam em vinis. Lembro-me da peça Liberdade, liberdade. De ouvir a voz dos atores e, confesso, de não entender muita coisa, mas achava bonito. Assim, o meu diário, que começou de maneira intimista, logo se converteu num libelo panfletário de má qualidade. Pensei que o havia perdido, entre tantas mudanças de cidade e de casas, não me lembrava onde o havia deixado. Rezando, intimamente, para que ninguém o encontrasse ou lesse. Não pelo que dizia de mim, mas pelo texto de uma rebeldia infantil e de muito mau gosto literário. Anos depois, a mãe mo devolveu. Tinha guardado na sua mesa de cabeceira – um livro azul, de capa dura, com uma menina sentada, de cara sorridente, a escrever qualquer coisa. Reencontrei o diário. Reli e, de facto, passados tantos anos, continuava ruim, mas a inocência do texto não se perdera, nem a vontade de mudança que ele continha. Tornei-me uma rebelde discreta. Escrevia poesia, nem toda má, e também me atrevi na dramaturgia. Quase publiquei um livro de poemas aos 16 anos. Ainda bem que o projeto foi engavetado. Perdi os poemas, datilografados na Remington de capa amarelo-queimado, ou escritos a mão em qualquer papel que encontrasse. Perdi outros poemas, que escrevi mais tarde, quando fui viver muito longe da família e dos amigos. Perdi, pelo caminho, alguns amigos, poemas e nuca mais escrevi um diário. Mas a escrita não me abandonou.
Mirian Tavares é professora
Crónica publicada em:
Foto: Isa Mestre