A turbulência cessara, mas Miguel sentia ainda o corpo colado ao assento. Limpou o suor das mãos nas calças de ganga e aconchegou-se. Recompôs-se devagar, na certeza porém, mais uma vez confirmada, de que, se Deus quisesse que ele voasse, lhe teria dado asas. Respirou fundo e aproveitou o momento de acalmia para olhar pela janela.
Lá em baixo, a contrastar com o azul-claro do céu que envolvia o avião, estendia-se o azul-escuro do mar e os tons castanhos da terra, que se esbatiam à medida que dele se aproximavam. Imaginou praias de águas tépidas, areais dourados, raios de sol a tocar a pele de turistas lânguidos, amolecidos pelo calor.
O comandante interrompeu o devaneio com voz serena e impessoal. Corpo e mente prepararam-se de imediato para o anúncio de mais um troço de estrada em mau estado. Fechou os olhos. Conteve a respiração. Mas a mensagem não foi a esperada. O comandante alertou para mancha de nuvens que cobria a linha do horizonte. Miguel soltou o ar retido nos pulmões e apressou-se a procurar o ponto indicado: "Ali é a Faixa de Gaza" – concluiu o comandante.
Uma pressão surda comprimiu-lhe o diafragma. O medo da turbulência que sentira há instantes era agora risível, senão mesmo embaraçoso. Encostou-se novamente à janela. Não se permitiu pestanejar. Havia nele um inexplicável espanto. Como se tivesse acabado de descobrir que aquele território realmente existia. A evidência irrefutável estava agora ao alcance do seu olhar. A tragédia, até então circunscrita a um lugar distante e imaginado, materializara-se e ganhara coordenadas geográficas concretas.
Esforçou-se por vislumbrar qualquer sinal de guerra. Contudo, a paisagem, em negação, continuava bela e serena. A consciência da violência invisível esmagava-o, impedindo um ai, um suspiro, uma lágrima que fosse. Não havia possibilidade de catarse, apenas confronto. Um castigo, acreditou. Não tinha o direito de expiar a sua pequena dor.
Protegido naquela cápsula suspensa, a caminho de um destino seguro, certo de que dormiria em casa, de que o aguardavam um banho quente, uma refeição farta, o conforto de uma cama com lençóis frescos e perfumados, sentia-se simultaneamente impotente e culpado. Um ser irrelevante num mundo disfuncional.
Vista daquela altitude, Gaza era um fragmento minúsculo de paisagem. A brutalidade da luta sangrenta pela sua posse, um absurdo inexplicável e imperdoável. Miguel imaginou os corpos feridos e desnutridos. Tão perto. Imaginou a fome, o frio, a exaustão, o medo. Pais e mães confortando como podiam filhos famintos, doentes e mutilados, que os olham em busca de uma salvação que não têm para dar. E pensou na monstruosidade daqueles que, movidos pelo desejo de poder e pela ganância ultrapassam os limites do concebível, aniquilam tudo e todos num frenesim cego – ignorando que lutam, na verdade, contra a sua própria pequenez e inevitável condição transitória. Miguel tentava, em vão, dar sentido a esse apetite insaciável. Ao impulso de possuir o que jamais se poderá usar, desfrutar ou sequer contar.
Ocorreu-lhe que alguém deveria explicar àquelas pegas-rabudas que não iam conseguir comer tudo o que roubavam. E que o brilho que viam em Gaza não era ouro. Era fome. Eram malgas, tachos e latas raspados até ao metal cru, reluzindo sob o sol.
Miguel avistou, então, braços que rasgavam o véu de nuvens e atravessavam os céus: mãos gigantes, ossudas, estendidas na sua direção. Trémulas, porém decididas. Implorando. O quê? Nem sabiam. Porque na ausência de tudo, qualquer coisa é um tesouro: um naco de pão, um copo de água, um gesto de compaixão.
E ele? Ele impotente, sem poder dar nada, pensou: – E se, ao invés de seguirmos em frente, aterrássemos ali?
Mas a escolha era demasiado fácil. Tão simples como optar entre o Céu e o Inferno.
Sílvia Quinteiro é professora
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