Tem quase uma década aquele que considero ser um dos mais valentes e valiosos livros que foram publicados em Portugal neste século. Chama-se O Sexo Inútil e foi escrito por Ana Zanatti (Sextante Editora). A sua autora, que se iniciou em 1998 na escrita para telenovelas (com Rosa Lobato de Faria), publicou a primeira obra de ficção literária, Sinais do Medo em 2003 – desde aí, tem assinado outras narrativas de ficção, livros para criança, e poesia. Desconheço quando terá sido publicado o seu primeiro poema (duas estrofes, escritas em 2012, saíram no ano seguinte numa antologia breve sobre o pão, Este é o Meu Corpo, publicado pela extinta teaforone). O ano passado, a editora Abysmo editou-lhe aquele que, tanto quanto me é dado saber, é o seu primeiro livro de poemas, As Trapezistas.
As Trapezistas compõe-se de duas partes: “ÁTIS, A DOS SEIOS FLORIDOS”, com catorze poemas, e “ATRAVESSAR A NOITE”, com trinta e cinco. São duas porções do mesmo livro, separadas talvez no tom, mais lunar na segunda, menos desesperançado (ainda que a lidar com a “desordem” de um presente) na primeira. Em ambas, estrutura-se um diálogo implícito, um “eu” que se quer estruturado, claro, ordenado, que enuncia um “tu” desestabilizador, “o mar, / uma realidade que se impõe, / energia de ondas e marés” (8), surgido para instituir “a desordem que sempre se anuncia” (47). O título da primeira parte oferece a leitura de um amor homoerótico, aquele que se presume ter unido a poeta de Lesbos, Safo, a uma sua companheira (pupila? amiga?), Átis, personagem de alguns dos fragmentos que sobreviveram os mais de dois mil e oitocentos anos que nos separam da sua época. É sobre o amor homoerótico – dito “inútil”, no título daquele livro de 2016, dito inútil também nos versos do poema precisamente com esse título (41), em que se escreve: “A minha existência organiza-se / na inutilidade de amar” –, é sobre esse amor que se fala nos versos de As Trapezistas, entendidas, então, como seres de vida instável, em precários equilíbrios num mundo que não oferece qualquer porto seguro, qualquer constância quotidiana: “o meu rosto vidrado pasma” porque “As bombas explodem”, no poema “Desesperança” (53-54). Em As Trapezistas, encontro o repositório de uma intimidade que se pensa, que se imagina no fulcro deste vórtice existencial, e que poderia corresponder ao mais fundo imaginado por cada uma das muitas vozes relatadas em O Sexo Inútil – uma contraparte lírica para os depoimentos documentados no livro de 2016, que transforma o documental em poético, que faz alinhar a sublimidade do verso com o que de mais prosaico se encontra na dureza do real.
Ana Isabel Soares é professora
Crónica publicada em:
Foto: Vasco Célio