Uma das lendas sobre como terá surgido o chá é contada por Wenceslau de Moraes, no livro que fez publicar em 1905, O Culto do Chá. As maravilhas da tecnologia permitem folhear hoje as suas páginas ilustradas, a partir do site da Biblioteca Nacional, percebendo até a transparência do papel de arroz. É como se os dedos lhe tocassem a textura, passassem sobre as rugazinhas junto ao vinco da folha e experimentassem o socalco mínimo dos desenhos colados na página, corressem o fio do corte para passar para a página seguinte – como se se ouvisse mesmo o som surdo do papel. Um primor. A beleza das ilustrações, atribuídas a Yoshiaki (sobre quem não encontrei dados fidedignos, já que o nome aparece corresponder a vários artistas, mesmo na transição do século XIX para o XX), corresponde à elegância da prosa de Moraes, descritiva, visual, bondosa para quem lê. Mesmo quando narra a história de Darumá (hoje vê-se escrito sem o acento), sacerdote indiano que terá vivido no século V ou VI e, conta-se, terá levado para a China o budismo Zen. Qualquer relato acerca desta figura sublinha a sua dedicação à prática da meditação e ao sacrifício do corpo pelo aperfeiçoamento do espírito. Moraes tem o cuidado de abrir a narrativa com uma invocação (“Oh, fé dos velhos tempos!...”) e uma amorosa declaração a essas diferentes entidades: “– como eu vos amo, a todos!...” Só a seguir se digna elevar os seus “piedosos pensamentos” a Darumá. Nove anos (Moraes não precisa o número de anos, fala em “passar a vida”) terá o monge decidido ficar em meditação, vigilante e “de joelhos sobre o solo pedregoso”, por “voluntaria desistencia das efémeras alegrias terrenas”, “vulto... ajoelhado sobre as pedras”. A postura prolongada justifica a imagem com que ainda hoje é representado, sem pernas, ou com um único pé à mostra, para o que não teria grande uso, ainda assim. Moraes acha-lhe um curioso correspondente português: Darumá é como “o nosso frade do sabugo”, uma espécie de sempre-em-pé que, na verdade, porque está sempre sentado sobre os joelhos é que jamais pode cair.

Página de O Culto do Chá,
de Wenceslau de Moraes,
com ilustração de Yoshiaki
(versão digital da Biblioteca Nacional de Portugal)

E o chá? O chá, conta Moraes, é coisa santa, pois terá surgido das pálpebras de Darumá quando o cansaço (fraqueza dos terrenos) o fez cair no sono e a sua ira por ter fraquejado o levou a cortar as pálpebras, para não voltar a adormecer: caídas no chão depois de cortadas, e como se transformassem em castigo de humildade perante o gesto cru de auto mutilação, as pálpebras transformara-se no arbusto cujas folhas dariam a bebida estimulante que ajudaria à meditação, à vigília, ao permanente alerta espiritual. “Estava conhecido o chá”, continua Wenceslau de Moraes: “tem pois na China a sua origem, e é coisa santa, como se acava de provar. Crê quem quer; mas devo advertir que este livro foi escripto para os crentes”. Assim. Numa penada, a mais delicada das bebidas surge de um gesto humano tão duro, e duma tão generosa dádiva dos deuses.

Daruma em Meditação, séc. XVIII,
Torei Enji
東嶺円慈 (1721-1792 d.C.),
Tinta sobre papel (Los Angeles County Museum of Art)













Ana Isabel Soares é professora

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