Sempre que os prazos e a execução dos investimentos se veem comprometidos nos grandes projetos nacionais — como aconteceu com a Jornada Mundial da Juventude, atualmente com os investimentos do PRR ou, mais recentemente, nas metas assumidas para o investimento de cariz militar no âmbito da NATO — surgem de imediato pressões para criar exceções às regras da contratação pública. No entanto, o problema da contratação pública em Portugal não se resolve com exceções pontuais, mas com uma revisão estrutural que a transforme, de forma definitiva, num verdadeiro instrumento de desenvolvimento nacional.
A transposição das normas europeias para os ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros é da responsabilidade de cada um destes, cabendo-lhes definir a forma como o farão. A União Europeia não impõe o modelo legislativo a adotar, deixando essa decisão ao critério nacional. Contudo, torna-se politicamente mais cómodo atribuir à União Europeia a culpa por ineficiências, burocracia ou incumprimento de objetivos resultantes de opções internas, alimentando uma perceção injusta de distância ou insensibilidade por parte das instituições europeias.
O Código dos Contratos Públicos (CCP), publicado em 2008, tem sido ao longo dos anos alvo de múltiplas alterações que procuram ajustar a legislação nacional às exigências europeias e à realidade económica portuguesa.
Muitas vezes, essas mudanças têm sido fragmentadas, reativas e tecnicamente densas, o que tornou o CCP num instrumento excessivamente formalista e pouco funcional. Mais do que um código, tornou-se uma teia jurídica onde o foco está frequentemente no cumprimento exaustivo dos procedimentos, em detrimento da qualidade dos resultados alcançados com os contratos públicos.
A contratação pública é uma das ferramentas mais poderosas do Estado para cumprir as suas políticas e transformar o território. Por ano, movimenta cerca de 40 mil milhões de euros em Portugal. Apesar disso, continua a ser tratada como um exercício meramente burocrático, em vez de ser reconhecida como um instrumento estratégico para gerar valor económico, promover inovação, garantir sustentabilidade e reforçar a coesão social. A realidade atual exige uma profunda revisão do CCP, não apenas para reduzir o seu peso normativo, mas para reformular a sua filosofia de base.
O exemplo dos Países Baixos mostra que é possível fazer diferente. Com uma lei simples, guias práticos eficazes e uma abordagem orientada à proporcionalidade, o sistema neerlandês aposta na simplicidade, no pragmatismo e na confiança institucional. Os contratos públicos são desenhados para atingir resultados concretos: poupança energética, redução de emissões, inclusão de pessoas vulneráveis ou criação de valor económico local. A contratação é vista como uma política pública em si, e não apenas como um mecanismo de aquisição.
Enquanto em Portugal os cadernos de encargos continuam a descrever minuciosamente os meios e os materiais a usar, nos Países Baixos define-se o objetivo e desafia-se o mercado a apresentar soluções inovadoras. O pagamento está muitas vezes associado ao desempenho real alcançado, e os contratos incluem mecanismos de avaliação sistemática. O sistema holandês também reconhece e valoriza o papel do responsável pela contratação pública (mais como Gestor de Compras do que como Gestor Administrativo do Contrato), profissionalizando essa função e apoiando-a com estruturas técnicas como centros de competências. A digitalização é total, os dados são abertos e os procedimentos são pensados para facilitar o acesso de pequenas e médias empresas.
Portugal tem muito a aprender com este modelo. Uma futura revisão do CCP deve simplificar a estrutura normativa, modular os procedimentos consoante a dimensão dos contratos e reconhecer a importância da capacitação dos agentes públicos. É essencial integrar cláusulas de desempenho, mecanismos de monitorização e critérios obrigatórios de sustentabilidade e inclusão. A contratação pública não pode continuar a ignorar as metas ambientais e sociais do país, nem pode perpetuar práticas que excluem microempresas por excesso de formalismo ou risco jurídico.
Reformar o CCP não é apenas um desafio técnico, é um imperativo ético, político e económico. Num contexto de escassez de recursos e exigência crescente de qualidade no serviço público, a contratação deve ser repensada como uma alavanca de transformação do Estado. Menos centrada na lei, mais centrada no valor. Menos presa ao procedimento, mais comprometida com o impacto. A contratação pública é demasiado importante para continuar a ser gerida como um processo administrativo. É tempo de a tratarmos como o que verdadeiramente é: uma política pública com poder para mudar o país.
Carlos Manso é Economista e Membro da Direção Nacional da Ordem dos Economistas
Crónica publicada em:
REVISTA ALGARVE INFORMATIVO #485 by Daniel Pina - Issuu
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