Faltam três semanas para o final do ano letivo. O ritmo é acelerado — frenético, mesmo. Aulas, seminários, testes, correções, palestras, orais... Como se não bastasse, é sexta-feira. E fim de dia… A sensação é de sufoco. Quase de desespero. O tempo não chega. Alguma coisa vai ficar para trás. E corro, corro, corro…

De um lado para o outro, de casa para a universidade, de sala em sala, entre edifícios. O telemóvel, tão colado à mão que mais parece um implante, ajuda a acompanhar os e-mails que não param de chegar e a atender chamadas em que se cruzam questões urgentes — como o agendamento de um evento, a dúvida do marido sobre que marca de manteiga deve comprar e a do filho sobre onde deixou o livro de Física — com questões tontas, que desafiam os limites da minha paciência cansada.

E, como a lei de Murphy não falha, o dia, que começou ventoso e fresco, transformou-se inesperadamente. Estou de fato, sapatinho fechado com meia e, lá fora… 32 graus. Pondero passar por casa para me recompor e mudar de roupa antes de rumar ao último compromisso do dia, mas tal não se afigura possível. Faço-me à estrada e sigo para São Brás de Alportel. Preciso de silêncio para me concentrar no que vou fazer, mas o telefone não dá tréguas. Estaciono, ainda com a cabeça a mil, e só passados uns instantes me apercebo de que, afinal, acabei por chegar cedo demais.

Respiro fundo. Saio do carro, penduro o meu erro com mangas no braço, mas não o abandono. O evento exige a compostura de um blazer, mesmo que o corpo discorde. Arregaço as mangas, sacudo o cabelo que teima em colar-se ao pescoço e olho desconsolada para os sapatos que me afunilam os pés. O pior não é alguém ter tido a ideia de criar estes objetos de tortura, é eu tê-los comprado... voluntariamente.

Ponho-me a caminho, em direção a uma loja onde sei que vou encontrar exatamente aquilo de que preciso para me recompor. Avistar a porta aberta põe-me um sorriso nos lábios.

Entro. Espero que me atendam, mas não está ninguém ao balcão. Na esperança de que me ouçam, tusso, faço barulho com as chaves, mexo nas moedas, bato o salto afiado no chão (pode ser que, afinal, os amaldiçoados sapatos tenham alguma utilidade)… Até que, finalmente, vindo da rua, surge um rapaz. Move-se com uma calma inesperada. Cumprimenta-me, pousa uma pequena mochila e pergunta o que desejo. Peço um copo com dois sabores: uma bola de D. Rodrigo e outra de figo com amêndoa. Coisa ligeira, eu sei. Refugio-me nas sábias palavras da minha bisavó: Paga o mal que faz com o bem que sabe!

Questionada sobre se o gelado é para levar ou se vou ficar na esplanada, assumo que tenha a ver com a escolha do recipiente. Engano-me. Digo que me vou sentar na esplanada e ele responde:

— Se aparecer alguém, pode avisar que eu volto já? Vou ali só dez minutos.

Concordo e, enquanto vou apagando as preocupações com pecaminosas colheradas de gelado, acumulo funções: CEO de uma gelataria em São Brás.

Os clientes que chegam não parecem surpreendidos com a informação. Imagino que o “vou só ali” faça parte da rotina e que todos, em algum momento, tenham assumido as funções de gestor interino do estabelecimento. Escolhem uma mesa e aguardam. O sossego é tanto que quase adormeço. Espera-se em silêncio, sem pressas. Ele já vem.

Estico-me, para ver se desperto um pouco, e, apercebendo-me de que a tensão que me prendia a cervical desapareceu, rodo lentamente o pescoço para um lado e para o outro. Uma senhora idosa, acompanhada pelos netos, lança-me um sorriso aberto:

— A senhora não é de cá, pois não? — pergunta.

— Não. Sou de… — ia a responder, quando me interrompe:

— Vê-se logo. Com tanta roupa num calor destes. Está aí toda escalmorrada, coitada. Não está habituada aqui ao tempo do Algarve. É de Lisboa?

— Sim, sim. — apresso-me a responder, porque a vida já é demasiado difícil para se ser julgada pela escolha da indumentária.

O rapaz regressa. Abandono a mesa e o cargo e dirijo-me à Biblioteca Municipal. O dia terminará com a apresentação de Flores de cinza, de Dora Gago. Poemas que são um hino à esperança e ao recomeço — quem sabe se como proprietária descontraída de uma gelataria num qualquer recanto do Barrocal. Isso é que era vida!

Sílvia Quinteiro é professora

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