Portugal está outra vez a arder. E quando digo arder, não falo apenas das serras e pinhais — ardem casas, memórias, vidas inteiras que levaram décadas a erguer e que, em poucas horas, ficam reduzidas a pó e silêncio. Todos os anos o cenário repete-se: helicópteros que não chegam, viaturas insuficientes, bombeiros sem descanso e famílias que veem os seus sonhos desfeitos em cinza. Mas a paciência do povo vai-se esgotando perante o estrondoso falhanço do Estado.
Lembro-me, na primária, de uma pergunta feita pela professora: “O que gostavas de ser quando fores grande?”. Não me recordo da minha resposta, mas lembro-me de muitos colegas dizerem com orgulho: “Bombeiro”. Hoje, olhando para trás, percebo o que isso queria dizer: que ser bombeiro é um dos maiores atos de coragem que alguém pode escolher. Eu, mesmo em miúdo, sabia que não tinha dentro de mim essa força quase sobre-humana de arriscar a própria vida por desconhecidos. E é precisamente por isso que os admiro ainda mais.
Já fiz parte da Direção da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Portimão e tenho a honra e o privilégio de ter muitos amigos bombeiros. Já os admirava antes, mas foi no contacto direto com essas grandes mulheres e homens que percebi de verdade o que significa: ser bombeiro é assumir o risco de morrer em troca de nada — ou melhor, em troca de tudo. Em troca de salvar vidas, de resgatar animais, de proteger um pedaço de terra que ainda nos dá oxigénio.
Em Portugal, há milhares de profissionais, mas também muitos voluntários que vestem a farda, não por dinheiro nem por estatuto, mas porque acreditam que o mundo precisa deles. E isso devia envergonhar-nos a todos: precisamos mais deles do que eles de nós. Mas mais vergonha ainda deviam sentir os políticos que, independentemente do partido, dizem uma coisa na oposição e fazem exatamente o contrário quando chegam ao governo. Essa gente não é digna dos bombeiros que tem.
Nos Estados Unidos, os bombeiros são tratados como heróis. Por cá, continuam a ser vistos como «gente boa», mas quase invisíveis para a maioria dos políticos, como se a coragem fosse uma banalidade. E não é. Nada há de banal em passar dias sem dormir, a correr contra o vento e contra o fogo, com a vida pendurada por um fio.
E depois há o outro lado: os incendiários. Criaturas que ateiam fogos por vingança, por dinheiro, por estupidez ou, pior ainda, apenas pelo prazer do caos. Não são só criminosos — são covardes da pior espécie. Transformam o verde em cinza, reduzem séculos de vida a pó, matam animais indefesos, roubam casas, memórias e futuro. Põem em risco a vida de inocentes e obrigam homens e mulheres de coragem a enfrentar o inferno que eles acenderam com um isqueiro barato. Deviam sentir na pele o mesmo fogo que lançam, todos os dias, até compreenderem a monstruosidade do que fizeram. E depois há a segunda vergonha: juízes que, poucas horas após serem apanhados em flagrante delito, os mandam de volta para a rua. Como se destruir vidas fosse apenas uma travessura sem importância. Essa impunidade queima tanto quanto as chamas.
Quando um bombeiro morre numa frente de incêndio, morremos todos um pouco. Porque uma parte de nós estava ali, protegida por ele. Porque, no fundo, sabemos que nenhum de nós teve a coragem de ocupar o seu lugar. E é precisamente por isso que dói ainda mais assistir à indiferença criminosa do poder político. Critiquei muito ao longo destes anos, com particular ênfase após a tragédia de Pedrógão, e volto a fazê-lo agora. Desta vez é a Ministra da Administração Interna que, pasme-se, demora doze horas a apresentar oficialmente as condolências pela morte de um herói nacional. Doze horas! Esse silêncio não é atraso, é desprezo. É um murro no estômago dos bombeiros e de todos nós, contribuintes que lhe pagamos o ordenado. E se isso, por si só, já não fosse motivo para a sua imediata demissão, a forma como se esconde nas conferências de imprensa — fugindo às perguntas com um insolente e cobarde “Vamos embora!” — expõe tudo: falta de empatia, falta de dignidade e, acima de tudo, falta de vergonha. O povo pode aceitar a tragédia da natureza, mas não pode, nem deve, aceitar a tragédia da indiferença política. E a história de Portugal já provou, vezes sem conta, que o povo não esquece os «filhos da pu…lítica» (como tão bem lhes chamou o humorista Guilherme Duarte) que o traem quando mais precisa. Um povo pode perdoar erros, pode até perdoar incompetência; o que nunca poderá perdoar é a indiferença.
E escrevo isto num Verão em que vemos um Primeiro-Ministro de férias na praia e em festas, enquanto, ao mesmo tempo, se perdem vidas, casas e sonhos. Como é possível? Como pode alguém defender isto? Como pode um país inteiro arder e o chefe do governo continuar a sorrir para fotografias, copo na mão, como se nada fosse com ele? Onde estão os conselheiros, os assessores, a consciência mínima que devia dizer: “Agora não, senhor Primeiro-Ministro. Agora é tempo de luto, de trabalho, de estar ao lado do povo. É hora de mostrar que é líder!”? O que nos disseram aqueles brindes e sorrisos de plástico? Que as casas queimadas não passam de números em relatórios? Que as mortes de bombeiros são apenas estatísticas para encher tabelas frias? Se é isso que pensam, então já não governam pessoas — governam cinzas. É esta a liderança que temos: ausente, desligada da realidade, uma elite cega e protegida, enquanto o país real arde, chora e enterra os seus heróis.
Não encontro palavras suficientemente fortes para agradecer a todos os que vestem aquela farda. Obrigado por carregarem o capacete, a máscara e os pulmões cheios de fumo, quando nós, cá fora, só conseguimos carregar a angústia de ver o país em cinzas. Obrigado por terem a coragem que nos falta.
Eu nunca quis ser bombeiro — mas quero sempre ajudar-vos. Já interrompi férias para carregar águas, fazer sandes, o que fosse preciso. E faria tudo de novo. Porque há profissões que não são para todos, só para gigantes.
Que este Verão não traga mais mortes. Que vos poupe, o mais possível, da crueldade das chamas e da indiferença política. Mas, quando tudo acalmar, não vos deixemos outra vez esquecidos, como tantas vezes acontece. Porque Portugal não pode continuar a viver eternamente à custa de heróis maltratados.
Obrigado por existirem.
Júlio Ferreira é um inconformado encartado
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