Sempre sonhei conhecer São Tomé e Príncipe. Os livros, as fotografias, os filmes, os programas de culinária, as reportagens — tudo contribuiu para uma imagem idealizada da ilha. Um paraíso onde o tempo corre devagar e que imaginei como o lugar ideal para, um dia, me aposentar. Uma casa junto à praia, rodeada de coqueiros. Areia dourada, água morna, um verão infinito. Canoas a ir e vir. Gente feliz no seu viver sem pressa.

Quando surgiu a oportunidade de visitar o país, agarrei-a sem hesitar. Preparei a viagem ao mais ínfimo detalhe. Acreditei estar pronta para tudo. Tal como acreditei que o primeiro impacto seria o da exuberância das cores. Enganei-me. O que sobressai à chegada é a sensação de se ter aterrado num mundo em miniatura. Apenas as pessoas são de tamanho normal. Um pequeníssimo aeroporto, uma zona de chegadas improvisada numa tenda. Um minúsculo e desengonçado tapete a desfilar a bagagem.

Depois as distâncias, que me pareciam significativas nos mapas, revelam-se afinal curtas, tal como o são as estradas. Já o tempo que levamos a percorrê-las... é outra conversa. Duas vias saem da capital e contornam a ilha. Como duas cobras que se procuram. Deslizam lentamente em direção uma à outra, mas não se encontram. Não há como circundar a ilha por via terrestre. Nunca houve, e a recente queda de uma ponte veio abreviar o já curto e acidentado trajeto da zona norte. A sul, a viagem faz-se transpondo buracos: enormes, imensos. Nas ruas de São Tomé, o cenário não difere muito. Aqui, o trânsito obedece a um código peculiar: a prioridade é sempre do mais audaz, e a velocidade é regulada pela dimensão das crateras. As mais eficazes, neste aspeto, são as que se encontram inundadas. Nunca se sabe o que escondem. Eu, pelo menos, receio que, tal como se diz da Boca do Inferno desta ilha, algum destes buracos possa devolver-me a Lisboa.

O grau de degradação da cidade é tal, que se estas ruas por magia se esvaziassem, sentir-nos-íamos de imediato numa cidade abandonada há décadas. Uma mão cheia de edifícios escapa à regra: o Palácio Presidencial, as instalações da ONU, algumas embaixadas, três hotéis, outros tantos restaurantes, meia dúzia de igrejas e pouco mais. A ausência de investimento é gritante. Tapa-se um buraco aqui, outro acolá, renova-se o passeio marítimo... mas nada que sugira um futuro diferente.

A visita às roças confirma o constatado na cidade. As ruínas albergam aqueles que herdaram o trabalho dos seus antepassados e que ali vivem num estado de suspensão, como se continuassem a aguardar o toque do sino para a contagem. A marca da escravatura ainda não se dissipou. Estão ali. Vão estando. Não com uma perspetiva de porvir, mas com o peso de uma tarefa por acabar. Cacau e café. Vão roçando até que a ferrugem os consuma e pare definitivamente. As pessoas, tal como as máquinas, são a herança do tempo colonial, ali deixada pelos portugueses no século XIX. Roça-se. O depois é apenas uma interrogação.

É-me garantido a todo o momento que, apesar da pobreza, ninguém passa fome. A terra e o mar são generosos. Sobejam as bananeiras, papaieiras, cajamangueiras, árvores-do-pão, jaqueiras… Circula-se evitando atropelar porcos, cabras e galinhas. À beira-mar, mulheres vendem peixe acomodado simetricamente em alguidares coloridos. Abundam o polvo, o choco e o marisco. O mar, vasto e rico, contrasta com a frota de frágeis canoas de madeira, com as velas feitas de retalhos de sacas, e com os corpos sacrificados dos pescadores.

Não interessa aos países desenvolvidos perder as cotas de pesca, nem que os são-tomenses ganhem mais com o café e o cacau do que o valor da matéria-prima, explicam-me. A exploração do recém-descoberto petróleo não se prevê diferente. Cairão algumas migalhas sobre a ilha. Não se sabe em que pratos. A riqueza destes mares encherá, como sempre, bolsos brancos.

A pobreza é visível em cada centímetro do território, mas é nas crianças que se torna incontornável. Perseguem-nos, abordam-nos com olhos doces e sorriso aberto. Pedem “Doce, doce, doce!”. Doce, salgado, é indiferente. “Doce” é sinónimo de “qualquer coisa”. Crianças sem bonecas, sem carrinhos. Com bolas rotas e com catanas, que empunham com naturalidade e agilidade: um cacho de bananas, um coco, um tronco para fazer carvão… Adultos e crianças recolhem o que encontram. A catana é uma necessária extensão das mãos.

Abrando junto a uma ribeira. Dezenas de mulheres lavam roupa e estendem-na sobre pedras negras. Os filhos brincam por ali. Tomam banho. Não muito diferente do Portugal de outros tempos. As cores são vibrantes e convidam a fotografar. Avanço, e é nesse momento que, diante da lente, surge um rapazito. Dez, doze anos, talvez. Sem dizer uma palavra, interpõe-se entre mim e a paisagem, levanta o braço e mostra-me o dedo do meio. Não num gesto de traquinice. O ar é sério. Os olhos transbordam o peso de uma desilusão que não se aprende, herda-se.

Fico sem reação. Retiro-me. Ele não se move um milímetro.

Observo agora a fotografia e percebo que aquele dedo do meio era para mim, sim. Mas era também para todos nós. Para todos os que lá passaram e passam, olham e não fazem nada que lhe permita acreditar no futuro: igrejas, missionários, diplomatas, turistas… Este é o dedo em riste de um povo cansado de promessas, de turistas com câmaras ao peito, de fundos que não chegam, de uma ajuda que é esmola. Um gesto rude, sem dúvida, mas que não pretende ofender. Que é um grito de revolta. Uma denúncia. Um clamor. Um poema, como o escrito por Marcelo da Veiga em 1935:

África não é terra de ninguém,
De quem chega, suga e já não vem.
Não é despojo de conquista fria,
Nem mapa branco de cobiça e tirania.
África é nossa! É nossa! É nossa!


É impossível não sentir vergonha. Não escutar. Mesmo que doa. Mesmo que o poema venha sob a forma de um assertivo dedo do meio.

Sílvia Quinteiro é professora

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