Estavam certos aqueles que previram que a nova ponte para a Ilha de Faro traria grandes desgraças. E nem eles imaginavam a maior de todas. Não, não falo do facto gravíssimo de ter agora duas faixas. Claro que era muito melhor só com uma. Cheguei mesmo a pensar em listar aqui algumas vantagens do antigamente, mas as crónicas querem-se curtas, terá de ficar para outra oportunidade. Também não me refiro ao desgosto de termos perdido a velha graçola de família: “Vamos lá ver se é hoje que a ponte cai e vamos todos a boiar até à Barrinha”. Ah, que saudades desses belos tempos! Mas a verdadeira tragédia, aquela que aqui evoco, foi a construção da ponte ter trazido consigo o surgimento de uma nova espécie invasora.

Todos sabemos que a ponte foi construída por uma empresa espanhola e que os malandros dos espanhóis ainda não desistiram de tomar Portugal de assalto. Durante meses, vimos ali os seus barcos, as gruas, o gigantesco batelão. Sempre sob a vigilância atenta da polícia. Muito suspeito. Tanto que, à falta de melhor explicação, só posso concluir que foi assim que a criatura aqui chegou. Tal como as lapas, as algas e outras pragas que ninguém encomendou, veio agarrada ao casco de uma embarcação e ficou à espreita. Sorrateira. Silenciosa. A planear o ataque em época balnear. Falo-vos, pois, do peão selvagem.

Esta espécie apresenta hoje uma elevada taxa de ocupação do tabuleiro da ponte, onde parece ter encontrado o seu habitat preferencial. Presumo que se reproduza no lodo e trepe os pilares, fazendo uso de garras retráteis. Uma vez entre os humanos, o seu comportamento consiste em deslocações repetidas, para a frente e para trás, numa cadência ritual. Os avistamentos solitários são raros. A espécie manifesta um claro comportamento gregário e tende a formar pequenos agrupamentos ou pares estáveis. Não deve ser confundida com outras duas espécies morfologicamente semelhantes, porém com padrões comportamentais distintos: o peão pasmado e o peão distraído. Um barco que passa, um pôr-do-sol mágico… quem nunca?

Já o peão selvagem apresenta características dignas de registo. O pobre bicho sofre de uma miopia tipo toupeira: as placas de sinalização, as bicicletas que se aproximam...nao vê nadinha. E, a piorar a situação, a acuidade auditiva não é melhor. Quando alguém lhe pede para se desviar, o ente fica baralhado: abranda o passo ou fica imóvel. Andar e ouvir ao mesmo tempo é pedir muito e, como sabemos, a evolução das espécies é lenta. Há, contudo, uma forma de o tirar deste alheamento do mundo: uma campainha de bicicleta. Nem mais. Estimulado pelo toque da campainha, o peão selvagem desperta subitamente. Dá-se a metamorfose: eriça-se-lhe o pelo, ruge como um leão e liberta o repertório linguístico limitado e rasteirinho que o caracteriza.

Outras espécies invasoras, como o caranguejo-azul ou o lagostim-vermelho, ainda se redimem no prato: podem engrossar um arroz de marisco gourmet, dar uma nota exótica a uma cataplana reinventada ou elevar um xarém à categoria de prato de assinatura. Já o territorial e bravio peão selvagem, nem para isco serve, quanto mais…

Inútil, agressivo e emissor compulsivo de grunhidos e impropérios, o peão selvagem é uma excrescência absolutamente dispensável. Impõe-se, portanto, a intervenção urgente das autoridades no controlo desta praga. Atendendo às semelhanças com o igualmente invasor cágado-americano, parece-me que não seria descabido aplicar-lhes idêntico tratamento: recolher os espécimes, confiná-los e, quem sabe, esterilizá-los. Admito que tal medida pudesse ferir algumas suscetibilidades, e por isso proponho uma solução mais suave: domesticá-los. Se até os ursos conseguem aprender a andar de bicicleta, não vejo porque razão o peão selvagem não poderá dominar truques elementares como desviar-se numa ciclovia ou ceder passagem sem lançar insultos. Caso a tentativa falhe, restará apenas reconhecer que a construção da nova ponte foi um erro, demolir a obra e admitir que, afinal, foi de uma prudência visionária ter deixado a velhinha ponte ali ao lado.

Sílvia Quinteiro é professora

Crónica publicada em: