Uma revista pode ser muitos livros. A Limoeiro Real, fundada por três amigos em Tavira, “na Primavera de 2022”, é uma biblioteca, uma sala de jogos, um salão de baile, uma galeria de arte, imensos, mas igualmente o casulo onde se pode esconder uma solidão no amor à leitura. Há uns dias foi lançado na tavirense Casa das Artes, o número 7 desta revista literária, que tem hoje à frente Mariano Tomasovic Ribeiro (poeta e tradutor) e Inês Viegas Oliveira (ilustradora e autora). Sete volumes de uma revista de periodicidade mais ou menos regular, que começou como trimestral e, de há três números para cá, se afirmou semestral, acrescentam-se desde há pouco à edição de romances (ou seja, a Limoeiro Real transbordou, a biblioteca fez-se maior, o salão de baile foi amplificado, a galeria de arte ganhou um anexo, o casulo ajustou-se ao corpo maior).
Fazem falta revistas literárias. Fazem falta revistas literárias? Se a memória atraiçoa a civilização, melhor será registá-lo, como há tantos séculos se faz – para deixar de haver o vazio, ou para que o esquecimento seja só fruto da escolha, não da ausência da sua possibilidade. Faz falta poder-se ler revistas como a Limoeiro Real. Desde o primeiro número, do Verão de há três anos, a revista Limoeiro Real é uma coleção de peças preciosíssimas: nesse momento inaugural, em pouco mais de cem páginas, reúnem-se palavras de Ederval Fernandes e Emily Dickinson, Miguel-Manso e Max Blecher, Yōko Tawada e Cesare Pavese, as cores e os traços de Bina Tangerina com uma concha autocolantes para Inês Francisco Jacob. O texto de Pavese, aliás, é o último (antes de um jogo visual que se repete nos números seguintes e pode incluir receitas culinárias, sugestões de passeio, de visitas ou de outras leituras) e funciona como um posfácio que é um editorial, um manifesto: os livros, diz Pavese (pela tradução de Fred Spada), “[d]evem ser levados a sério. Mas, justamente por isso, devemos evitar torná-los ídolos, ou seja, instrumentos da nossa preguiça” – em cada publicação desta revista, ressoam os lemas de que os livros (a poesia, o conto, os vislumbres de romances, as traduções,...) não são instrumentos, mas companheiros dessa preguiça («A preguiça ataca», é o nome de uma peça de Aldara Bizarro para jovens, uma das sugestões incluídas no final do número 2); de que a preguiça é o tempo que se permite dar à leitura e que esta devolve em “caridade para com os outros” (ainda Pavese). A Limoeiro Real oferece-se como periódica, mas, como os caprichosos limoeiros de troncos fincados na terra e ramos atirados para cima dos muros de quintais, pesados dos frutos e pacientes ao sol, vem de uma “sensação atemporal” (diz-se no editorial do número 1), une passado e presente, autores cujo sangue ainda corre e outros que são seiva dispersa pelo mundo, mas sem a fixidez nem a grossura de um cabo de aço – as linhas que juntam Antonia Pozzi a André Tecedeiro, a Charles Darwin, a Joana Bértholo, a Saut Situmorang, Djaimilia Pereira de Almeida ou Virginia Woolf, têm a espessura e a força de fios de aranha. Tecem-se sem que se dê por isso, enquanto constroem edifícios completos, catedrais diáfanas, lugares das margens da foz do Gilão e cúpulas para o universo inteiro.
A curiosidade sobre a Limoeiro Real pode ser satisfeita aqui: https://limoeiroreal.com/revista/index.php
Ana Isabel Soares é professora
Crónica publicada em:
Foto: Vasco Célio