Foi recentemente publicada a última avaliação anual independente das entidades gestoras — empresas e municípios que asseguram o abastecimento de água e saneamento em Portugal. O estudo anual, conduzido pela
Defining Future Options, baseou-se no Relatório Anual dos Serviços de Águas e Resíduos de Portugal (RASARP).

Temos o hábito de valorizar a qualidade da água que corre da torneira. E com razão: é fruto de uma estratégia bem implementada no passado. Mas, hoje, essa conquista serve apenas para justificar uma passividade face aos desafios do setor. Quem analisa os números da ERSAR e a última classificação das entidades gestoras percebe que estamos a viver de fachada. Porque, por trás da aparente normalidade, esconde-se um setor a prazo: endividado, envelhecido e dependente de subsídios municipais que, muitas vezes, nem chegam para tapar buracos.

Em 2023, mais de 200 entidades gestoras não conseguiram sequer pagar as contas com as tarifas cobradas. Em dezenas de casos, o que os cidadãos pagam cobre menos de 70% dos custos reais. Em alguns municípios nem sequer existe tarifa de saneamento — o que significa que é «grátis». Mas ainda alguém acredita que existem almoços grátis?

O que acontece é simples: quem paga são os contribuintes, via orçamento municipal. E quando o orçamento aperta, o primeiro sacrificado é o investimento. Resultado? Condutas velhas, estações a cair e sistemas frágeis, sem redundância. Basta uma seca prolongada ou uma cheia para expor a vulnerabilidade de muitos serviços.

Há ainda outro elefante na sala: o preconceito contra tarifas que reflitam o custo real. Muitas vezes alimentado pelos próprios autarcas, que iludem as populações e dificultam a implementação de soluções sustentáveis. Segundo o estudo, as empresas municipais ou privadas que fazem o que deve ser feito — cobrar tarifas que cubram custos e investimentos — aparecem no ranking com preços mais altos comparativamente às entidades gestoras ineficientes e insustentáveis. Logo, são apontadas a dedo como «caras».

Caras? — Não. Sustentáveis. O que é insustentável é manter preços artificialmente baixos e adiar investimentos vitais. Isso não protege as pessoas; engana-as.

Para agravar, há municípios que nem sequer reportam dados básicos à ERSAR. Num setor que lida com saúde pública e ambiente, isto devia ser tratado como prioritário. Sem transparência não há regulação, não há responsabilização e não há decisões que salvaguardem o futuro.

E não podemos esquecer: o setor da água e saneamento é um monopólio natural. O cidadão não escolhe quem lhe fornece o serviço. Por isso, é essencial reforçar a regulação. Só uma regulação forte garante que erros de gestão, investimentos desajustados ou ineficiências não acabam a ser pagos diretamente pelos consumidores.

Precisamos de uma estratégia que assegure a sustentabilidade dos serviços de água e saneamento. Não pode ficar só pela conversa — é uma questão de sobrevivência coletiva. Essa estratégia deve assentar em cinco verdades incómodas:

1. Sem tarifas justas não há futuro. O serviço tem de ser pago pelo seu valor real. Quem precisa deve ser protegido com uma tarifa social automática. O essencial deve ter uma tarifa justa e cobrir o seu custo; o supérfluo deve pagar um extra.

2. Municípios sozinhos não aguentam. É preciso cooperação, ganhar escala, criar empresas municipais ou intermunicipais e até considerar PPP ou serviços municipalizados, quando fizer sentido. Continuar a insistir em serviços diretos, frágeis e politizados é condenar comunidades inteiras à estagnação. A não ser que essa opção de gestão e política garanta o cumprimento dos objetivos de um sistema eficiente e sustentável.

3. Eficiência e resiliência já, não amanhã. Reduzir perdas, reutilizar água, preparar sistemas para secas e cheias. Quem não começar hoje estará, inevitavelmente, atrasado daqui a 10 anos.

4. Regulação forte para monopólios naturais. Onde não há concorrência, a regulação é a única salvaguarda. É ela que deve evitar abusos, ineficiências e decisões erradas que penalizam quem não tem alternativa: o consumidor.

5. Penalização para quem não cumpre. Havendo fundos comunitários alocados à eficiência hídrica, considerados como incentivos positivos, é fundamental a criação de um mecanismo que penalize quem insiste em ser passivo, quando é imprescindível que haja ação.

Hoje, o setor da água e saneamento em Portugal vive num círculo vicioso: tarifas baixas → falta de dinheiro → pouco investimento → serviços mais frágeis. É altura de virar o jogo e passar para um círculo virtuoso: tarifas sustentáveis → investimento → eficiência → serviços resilientes.

Podemos continuar a fingir que está tudo bem e ignorar os dados que provam o contrário. Mas, quando a próxima crise hídrica bater à porta, não haverá desculpas.

“Só damos valor à água, quando a fonte seca” - Provérbio Popular. Pensem nisto.

Carlos Manso é Economista e Membro da Direção Nacional da Ordem dos Economistas

Crónica publicada em:
REVISTA ALGARVE INFORMATIVO #495 by Daniel Pina - Issuu

Nota: Este artigo de opinião apenas reflete a opinião pessoal e técnica do Autor e não a opinião ou posição das entidades com quem colabora ou trabalha.