Passeio pela cidade. A lua está em quarto minguante e mingua a vida de um amigo – fina-se, em silêncio, a vida de Carlos Germano. Tudo neste mundo é repetição: nascer alguém, nascer o dia, subir o sol, cair a chuva, abraçar alguém, abrigar-se da trovoada, pisar a areia quente, adormecer, ouvir as rodas de um carro na estrada, ouvir o balir de uma ovelha, pôr-se o sol, morrer um amigo. Tudo se vai repetindo – será mistério, então, o que faz com que as pessoas sejam irrepetíveis? Cada um de nós é diferente do outro, cada um suscita no coração dos outros um calor só seu, um abraço único. O Carlos Germano é irrepetível. Mas, na sua tão própria generosidade, deixou sinais no mundo que deixa. Os sinais mais próximos que deixa são iguais a ele, iguais a mim, são pessoas – a amada, os filhos, a filha, os netos, as netas, irmãos, irmãs... São iguais de abraços, de olhares e risos, de saudação e despedida, do fechar de olhos no prazer de um almoço, no caminhar pelas ruas da cidade. Idênticos, os gestos e as pessoas, o aparecer e o abalar. O sinal mais amplo é o que se constrói na arte, na dádiva da arte, é o que o faz único – o Carlos deixou, para quem queira aceitá-lo, a sua presença em Fintar o Destino, filme que Fernando Vendrell realizou em 1998. E deixou o Djurumani.
Djurumani (modo guineense de dizer “Germano”) é o nome com que gravou Reencontro, álbum de 1995, gravado em CD e editado pela Dargil – foi, aliás, por esse disco que Vendrell chegou até ele. Nessa absoluta maravilha da música cabo-verdiana que é Reencontro, toca viola e outras cordas, mas sobretudo canta. Oferece o tom quente e cheio de uma voz que fica connosco no crioulo seu. Em “Grito Magoado” (composição sua), canta o sofrimento da mãe terra (São Nicolau, Cabo Verde) que vê partir os filhos com uma “dôr qui ca tem par”, uma dor sem igual pela ingratidão de quem dela sai. Em “Nha Terra Scalabróde” (“a minha terra esventrada”), contrapõe à falsidade dos exploradores, e da dita civilização e do progresso, a “pureza” dessa terra explorada – e a voz prolonga, quase chora, quando pergunta “ma pureza – onde qu’el ta morá...?” A pureza, diz a voz de Djurumani, mora no peito, no coração, nos “grogues de Sant’Anton”, na “areia branca di nos praia”. “História di nha povo” conta sobre alguém que escuta um relato de sofrimento (causado pelos homens, causado pela natureza), que, no entanto, se transforma em esperança “d’amor e paz e di morabeza” – aqui, a entoação da morna na voz de Djurumani é sublinhada pela guitarra de António Chaínho (como, noutros momentos do disco, o acompanham músicos como Bernardo Sassetti ou Rui Veloso).
Faz este ano três décadas o disco Reencontro. São estes os primeiros dias do mundo sem a vida do Carlos Germano. Se algum sentido faz abalar uma pessoa desta vida, destas ruas, dos abraços, dos amigos, da família, que seja o dar a conhecer e a recordar, muitas, muitas vezes, cada canção em que toca, em que canta Djurumani. Obrigada, amigo querido. Se não tivesses cá andado, “munde ca era sabe, munde ca era doce”.
(O episódio de 24 de agosto último do programa “As Noites do Kilimanjaro”, da RDP África, foi dedicada a Djurumani e passou Reencontro. Pode ser ouvido aqui: https://www.rtp.pt/play/p5435/e873528/as-noites-do-kilimandjaro)
Ana Isabel Soares é professora
Crónica publicada em:
Foto: Vasco Célio