Há coisas estranhas a acontecer no Egito. Quase tão estranhas como ter deixado de ser Egipto e os habitantes continuarem a ser egípcios e não egítios. Mistérios. Falo-vos, porém, de outro Egito — ou Egipto, como sempre o conheci —, onde não há egípcios nem egítios. Mas já lá vamos.

Desafio uma amiga a visitar-me para fazermos uma caminhada. Partimos das Gambelas em direção à Praia de Faro e, qual não é a nossa surpresa, quando damos de caras com fotocópias coladas nos postes e nas caixas da eletricidade a anunciar um desaparecimento. Pode parecer coisa normal, mas a questão é que nestas se oferece recompensa a quem encontrar — não um cão, nem um gato, nem sequer um papagaio —, mas um drone. Um drone! Nem duas, nem quatro patas: um bicho de quatro hélices.

E passa-se isto mesmo ao lado da casa onde viveram, no século passado, Vítor, pastor de cabras, e a sua mulher, Gertrudes. Hoje está em ruínas, mas continua a marcar o lugar a que, vá-se lá saber porquê, chamam Egipto. Sorrio ao imaginar o susto que o casal apanharia se visse o retrato daquela barata voadora gigante.

Seguimos caminho, de olhos no chão — não vá o drone estar por ali caído —, enquanto vou explicando à minha amiga que foi neste Egito sem pirâmides nem camelos que nasceu Joaquim, rapaz que viria a casar com a Cecília, natural de um lugar próximo daqui, batizado, também sem explicação que conheça, de Arábia. Nome pomposo para tão pouco: ali não há xás de longas barbas e túnicas brancas, nem petróleo a jorrar do chão, nem mesquitas douradas ou dunas a perder de vista. Só mato. Pergunto-me se esta criatividade na toponímia não seria o primeiro sinal de que aquele território tinha qualquer coisa de insólito, um prenúncio das coisas estranhíssimas que hoje por aqui acontecem.

E bastam apenas alguns passos para avistarmos algo que teria certamente assustado muito mais o velho pastor e a família do que um drone tresmalhado. Sim, porque esse não era nada que não se resolvesse com a fisga e um bom calhau. À nossa frente, rumo ao antigo lugar de pasto, agora transformado em universidade, surge um rebanho — não de cabras, mas de jovens. Isso mesmo: um rebanho de estudantes a atravessar o Egipto. Alinhadinhos, obedientes como nunca se viu. Nem Vítor, com a experiência de uma vida, conseguira alguma vez que as cabras lhe obedecessem assim.

Estes rapazes e raparigas, de cabeça baixa e coleira numerada, acatam sem pestanejar os urros de quem os comanda. Ouvem impropérios sem protestar, sem uma palavra, sem nada. Rostos sem expressão, submissos, sem brio, sem dignidade. Com menos vontade própria do que as cabras — e até do que os drones, que ao menos se tresmalham. Um cortejo andrajoso, besuntado de lama. Imundo. Um rebanho seminu no meio do caminho.

Se ressuscitasse para ver tal coisa, o pastor não teria dúvidas: é o fim do mundo que está a chegar. O fim do mundo em cuecas!

Sílvia Quinteiro é professora

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