Sou daqueles que agradece mais um dia com saúde e os cinco sentidos para a desfrutar. Tendo sido bafejado com o privilégio de poder ver, ouvir, sentir na pele, cheirar e reconhecer o paladar dos alimentos, não imagino o que é nascer sem um ou mais sentidos ou vir a perdê-los em vida. Não imagino, mas não sou, nem nunca fui, indiferente às limitações, dificuldades e provações de quem todos os dias (re)aprende a viver num mundo em constante mudança.

Senti na pele e no coração o facto de ser filho de uma mulher que devido a uma reação incomum a um medicamento esteve para morrer. Tinha eu dois anos quando então lhe foi administrada a «extrema unção», na iminência da partida do mundo dos vivos. Felizmente, para nós, família, tal não aconteceu. Deixou-lhe «apenas» a enorme sequela de ter perdido a visão total de um olho e a parcial do outro. Já com a missão comprida de criar os dois filhos, veio posteriormente a cegar dos dois olhos.

Ter sido criado por uma mãe que se veio a tornar no meu maior ídolo e símbolo, transformou-me no homem que hoje sou, pois nos seus gestos e ações diárias aprendi o que é viver e fazer viver sem um dos cinco sentidos. E sempre com um sorriso nos lábios! Se tal não tivesse acontecido, provavelmente não teria aceitado posteriormente ser professor de piano de uma aluna que veio, na altura, a cegar e de Educação Musical de alunos surdos. Agora sei: a ti, Maria de Lourdes Vieira, devo o «sinal» que me fez aceitar tantos desafios na minha vida!

Tendo em conta que no mundo da música, mesmo não vendo, muitos cegos tornaram-se melhores criadores e intérpretes do que muitos músicos com todos os sentidos funcionais, é com grande orgulho e satisfação que tenho entre os meus amigos, dois cegos que são disso um exemplo. Aqui em Faro, «ouver» a Cristina Afonso ou o Ricardo Martins a cantarem e a tocarem nos seus teclados é um deleite para os meus sentidos.

Sabendo que o multifacetado Ricardo Martins, para além do espírito lutador e empreendedor que o caracteriza, é também um homem altruísta, não fiquei nada admirado quando numa rede social manifestou o enorme orgulho e satisfação em integrar um novo projeto, desta feita ligado à experiência sensorial e de inclusão, promovendo a sensibilização e a integração de pessoas com deficiência visual no mercado de trabalho. Fui então «espreitar» o sítio na internet, bem como nas redes sociais, do recém-inaugurado espaço de experiência imersiva no escuro Four Senses.

Por entendíveis razões, imediatamente me apeteceu ir experienciar este projeto pioneiro em Portugal, inaugurado no dia 7 de abril de 2025 em Faro, e assim poder desfrutar duma experiência imersiva com a duração de uma hora no escuro. Evidentemente, estendi o meu desejo aos restantes membros da família, tendo a minha filha Catarina, apesar do medo do escuro, aceitado de imediato. Reserva efetuada e à hora marcada a guia Beatriz Varela recebeu-nos à entrada das instalações do Four Senses, na Rua Rebelo da Silva, n.º 33, em Faro. Com a devida e necessária explicação já efetuada e munidos da bengala que os cegos usam no seu dia a dia, iniciámos a descoberta e a escuta do mundo de uma nova forma, enquanto conversávamos com a guia.

Sem a visão, os nossos quatro sentidos foram desafiados através de cenários reais, onde o tato, a audição, o olfato e o paladar assumiram o comando. Entrámos num mundo guiado pela confiança e pela empatia, onde o que importava não era o que víamos, mas o que sentíamos. Durante mais de uma hora, empática e pedagogicamente guiados, fomos desafiados a caminhar por diferentes cenários que evocam lugares icónicos da cidade, usando os outros quatro sentidos disponíveis para conhecer, sentir e imaginar o ambiente que nos rodeava. Saí de lágrimas nos olhos, recordando a minha mãe, pois pela primeira vez tinha calçado os seus sapatos.

“A proposta do Four Senses é clara: abrir os olhos do coração e perceber que tudo é possível, mesmo quando não vemos com os olhos”, diz Ricardo Martins, coordenador dos guias da experiência, ele próprio cego e um membro da equipa que abraçou este projeto desde o início. Acrescenta ainda que “dentro do Four Senses, as pessoas vão ser felizes, vão rir, vão chorar e vão entrar no meu mundo, onde normalmente me guiam a mim e agora vou ser eu a guiar-vos”. Ricardo Mariano, fundador do projeto, afirma: “Aqui, quebram-se tabus. Desfazem-se mitos. E nasce uma nova consciência sobre o dia a dia das pessoas cegas”. Acrescenta ainda: “São poucas as oportunidades que temos para fazer a diferença na vida de alguém e esta é sem dúvida uma delas”.

Viver sem o sentido da visão é um convite diário à criatividade, à escuta e à valorização dos detalhes que passam despercebidos à maioria das pessoas. É, também, uma lição sobre as múltiplas formas de conhecer o mundo e de nos encantarmos com ele.

Como gostaria de ter agora a minha mãe presente para lhe confidenciar o que senti apenas numa hora sem visão. E tal como quando a Beatriz Varela, o Carlos Santos, a Andreia Santos e a Bruna Ribas se despediram de nós à saída, também termino este «desabafo» com lágrimas nos olhos.

Paulo Cunha é professor

Crónica publicada em:

Foto: Daniel Santos