Lembra o tempo
que você sentia
e sentir era a forma mais sábia
de saber
e você nem sabia?
Alice Ruiz


Quero escrever porque preciso. Mas não sai nada. É como carregar pedras e levá-las a lugar nenhum. Subir e descer a montanha. É preciso escrever porque viver, como sabemos, não é preciso. É incerto, inseguro. É fatal. Um texto que me salvasse, que dissesse o que quero, e não quero, dizer. Que dissesse. Eu me calo. Porque não consigo escrever, mas preciso. Escrever é um exercício - exige constância e alguma dedicação. Procuro qualquer coisa, um leitmotiv, um assunto. Qualquer coisa que me diga o que dizer. Nem comigo falo. Esses dias são só silêncio - que é uma dupla forma de solidão.

(Escrevi, ao longo de 5 anos, textos soltos, às vezes quase poemas, num blog muito íntimo. Quem me lia não fazia ideia de quem eu estava a falar. Quase nunca era sobre alguém, mas sobre mim mesma. Andamos à volta do nosso umbigo. E inventamos histórias. Uma vez, uma amiga perguntou: essa história tem corpo?)

Qual tua flor preferida? (perguntas enquanto tomamos um café). Eu olho para ti e digo qualquer coisa: margaridas (devia ter dito gerbera. Ou lírios. Houve um tempo em que adorava cravos vermelhos. E há as inevitáveis rosas, que prefiro em cachos, a crescerem desordenadas e a espalharem seu perfume pelas estradas. Sim, porque houve uma estrada com uma roseira. Mas essa é outra história). Que fazes? Costumas sair? (o frio, e uma certa ansiedade de estar ali contigo, a céu aberto, fazem com que eu trema um pouco. Olho para ti, sempre, e as palavras são apenas isto: palavras. Costumo saber usá-las. Esgrimi-las. Mas o frio - talvez, o frio deixava-me quase muda. Sei que não interessam as flores, nem as minhas saídas. A pergunta, que não fazias, era: quem és tu? O que és tu?). O café, um cigarro, pessoas e eu a olhar para ti e a ouvir as palavras, que são apenas isto: palavras. Não queres saber nada de mim? - perguntas. Sim, quero saber tudo de ti. Do hoje e do ontem. Mas não quero saber nada de ti. Porque sinto que não me devo aproximar. Porque tantos filmes já nos ensinaram isto: a intimidade, em alguns casos, só é possível com a ausência de palavras. Não quero saber de ti porque temo perder-me em caminhos que não vou percorrer. Porque saber de ti ainda me aproxima mais dos teus olhos, da tua pele, das tuas mãos, e não podemos avançar. Ficamos em suspensão. Cada vez que te vejo esqueço qual é minha flor preferida, quem sou eu, quem tu és. Somos um. Fundidos num só desejo. Sinto o suor da tua pele na minha pele, o sal da tua boca. Sinto. E é tão bom saber que estou viva. Tatear cada palmo do teu corpo nu que repousa ao meu lado. Exausto. Olhar para ti e deleitar-me com o que vejo. Qual é minha flor preferida? Não te saberia dizer. São tantas e serão tantas outras. Quem sou eu? Talvez descubras aos poucos, se tempo houver para descobertas.

(Releio às vezes o que escrevi e, mesmo eu, já não me lembro se eram só palavras ou se havia algum corpo que correspondesse ao texto. Se houve, o corpo, ele não ficou. Ficaram as palavras. São elas que permanecem. Mesmo que, muitas delas, quando juntas, pareçam um romance de Corin Tellado ou um filme de Pedro Almodóvar).

Mirian Tavares é professora

Crónica publicada em:

Foto: Isa Mestre