Dizem os especialistas que o lugar é uma fração do espaço à qual emprestamos sentido. Um pedaço de mundo que isolamos e reclamamos como nosso, a partir das vivências, das memórias, das pessoas com que ali nos cruzámos. Há mesmo quem o compare a uma casa: o espaço são as quatro paredes vazias; o lugar nasce quando nele colocamos um pedaço de nós: a mobília que escolhemos, o diploma emoldurado, uma fotografia da infância, recordações de viagens, o velho baú da avó, os livros… A casa respira, ganha alma, torna-se abrigo. O corpo e o coração aquietam-se.
O mesmo acontece quando caminhamos pela cidade onde crescemos. Pertencemos um ao outro. Nesta porta, o quiosque onde comprávamos os livros do Tio Patinhas. Mais adiante, a velhinha escola primária. Por aqui, o caminho que percorríamos até lá, de mão dada com a melhor amiga. Junto ao passeio, erguem-se ainda os jacarandás que nos colavam as sandálias ao chão. E, continuando, encontramos o jardim das brincadeiras, as esplanadas onde, já adolescentes, parávamos no regresso das aulas, o saudoso cinema, o escritório do pai, o cheiro da primeira croissanteria...
Sabemos de cor as ruas, os monumentos, as lojas, os cafés, os canteiros. Conhecemos-lhe inclusive os perpétuos buracos na calçada. A cidade, enorme caixa de memórias, é a prova silenciosa de que a nossa história existiu. Confirma as recordações a cada passo, mesmo que quem caminha ao nosso lado jamais possa vir a perceber o brilho súbito dos nossos olhos aos avistarmos a montra de uma obsoleta retrosaria, um pequeno museu ou o edifício abandonado de uma moagem. Só nós sabemos do tule escolhido para o vestido da comunhão, dos barcos em miniatura a navegar nas vitrines, dos fantasmas que assombravam os enormes silos nas noites de inverno.
Até ao surgimento das grandes superfícies, o coração da minha cidade batia, literalmente, no centro. A Baixa: ponto de encontro e de passagem, das piscinas que se faziam para matar o tempo e o tédio, palco de vaidades e de afetos. Ao fundo, a avenida: ramadas antigas, copas frondosas. E, a coroá-la, o solene Liceu, de cujas janelas se avistava o mar e se sonhavam futuros.
Entre uma coisa e outra, um parque de estacionamento. Os carros acobertados sob os ramos verdejantes. As pessoas a mover-se por entre eles, prolongando a rua principal. Acenos, palavras breves, o rumor da familiaridade.
Um parque de estacionamento. Nada mais do que isso. Não um postal turístico: um lugar, um recorte no espaço da cidade, imperfeito, mas vivo.
Enterrou-se o parque. Os carros eram um estorvo. Arrancaram-se as árvores. Suponho que também incomodassem. Alisou-se. Pavimentou-se. Removeram-se os obstáculos. Um espaço limpo. Um deserto. Desengane-se, porém, quem ali espera avistar um qualquer oásis, uma pirâmide ou uma esfinge enigmática. No largo asséptico ergue-se solitário, num dos extremos, um edifício alaranjado cuja frieza lembra um crematório.
É certo que a beleza é discutível. Mas não será por acaso que raras são as pessoas que o atravessam. E, quando tal acontece, fazem-no em passo acelerado. Ninguém se demora naquele vazio. Nem os cães, privados de um pneu, um canto ou um tronco que os convide a marcar território.
O antigo lugar deixou de o ser. O largo é hoje apenas espaço: anónimo, árido, indiferente. Um cenário sem identidade, ao qual ninguém pertence.
O que me entristece não é ter, na minha cidade, o largo mais feio do mundo — peculiaridade que, com algum engenho, podia mesmo ser usada para o converter em atração turística — é saber que, ao contrário de outros desertos, este não nasceu do acaso nem do abandono. Foi meticulosamente concebido, pensado linha a linha, pedra a pedra, até se atingir a mais profunda ausência de alma.
Sílvia Quinteiro é professora
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