Pedro Páramo, ou o caminho das pedras
Quando li pela primeira vez a novela que Juan Rulfo publicou em 1955, ao terminar, fechei o livro e fiquei a olhar para nada, para o monte de pedras a desmoronar-se que era Pedro Páramo naquele último parágrafo. Ao fim de mais de cem páginas em que, quase a abrir a narrativa, uma personagem informava Juan Preciado – o filho que vai à procura do pai – que Páramo já tinha morrido, ele põe-se “a caminho” da morte, que é o fecho da novela. Haverá na literatura outras obras (serão todas, afinal) em que personagem e discurso são uma e a mesma coisa, tão cosidas uma à outra, tão unidos os destinos – de terminar e não acabar de morrer, renascendo para sempre no retomar da leitura. Mas Pedro Páramo (e Pedro Páramo) é de pedra. Não é da solidez nem da imobilidade que é pedra, nem é pedra única, singular. Leio isso mesmo desde o momento (a frase) em que Preciado entra em Comala, a “aldeia sem ruídos” e ouve “cair os [...] passos sobre as pedras redondas que empedravam as ruas”. Porque é um texto de pedra, é um texto de ruído – o ruído que fazem as pedras nas pedras, os passos “ecoando contra as pedras”, as rodas das carroças nas pedras (“ranger das pedras sob as rodas”) ou nas pedras o vazio (“Esta aldeia está cheia de ecos. Parece que estão fechados no interior das paredes ou por baixo das pedras”). São seres vivos, as pedras de Comala, as pedras de Comala que se fazem vivas nas palavras de Rulfo. Assim como as suas personagens, quase todas “mortos velhos”, espíritos cuja existência está para lá do que comummente se conhece como vida – também elas são pedra, animada por uma espécie de sangue divino: “Deus esteve comigo esta noite [...] era noite quando voltei a mim [...] quando me endireitei, salpiquei as pedras com o sangue das minhas mãos”.
Foi depois de ver os filmes de António Reis e Margarida Cordeiro que uma crítica suíça terá comentado com a cineasta que via neles a mesma atmosfera de um livro mexicano. Cordeiro e Reis reconheceram-se na obra de Rulfo e quiseram fazer, a partir dela, um filme (após a morte de Reis, Margarida Cordeiro tentou vários anos, mas acabou por desistir do projeto – duro destino). Porque também as suas obras “arrancava]m] luz às pedras, irisava[m] tudo de mil cores”.
(Em Portugal, Pedro Páramo foi traduzido por Rui Lagartinho e Sofia Castro Rodrigues e editado na Cavalo de Ferro em 2004).
Ana Isabel Soares é professora
Crónica publicada em:
Foto: Vasco Célio
