Que seria dos humanos sem certezas? Sem lugares, tradições, datas e rituais que lhes garantam que tudo é — e continuará a ser — como conhecem?

Foi desta necessidade de ordem e de previsibilidade que surgiram os mapas, por exemplo: para nos certificarmos de que encontramos o que procuramos e evitamos o que tememos.

É também essa a razão para a existência de calendários: precisamos de nos orientar, de saber a quantas andamos.

Tudo o que nos dê a impressão de que a vida corre dentro do previsto tranquiliza-nos. Dispensamos as surpresas. Agarramo-nos, antes, à sabedoria rimada que nasce do hábito e dos ciclos: “Em abril, águas mil”; “Maio pardo e ventoso faz o ano formoso”…

O princípio é universal, mas detenho-me agora nas certezas que norteiam a vida na cidade de Faro. É que, contrariamente ao que pensa quem só visita a região em época balnear, ser farense não é hibernar no inverno e servir às mesas no verão. Por aqui há mesmo gente que vive e trabalha durante todo o ano e que, não encontrando melhor forma de o dizer, se reduziu ao dito “És de Faro, és farense” — o que, sendo verdade, não deixa de ser pobrezinho. Temos pilares como qualquer sociedade. Tradições próprias. Rituais que marcam o compasso da vida.

Em Faro, toda a gente sabe que julho é o mês de concentração das motas. Ninguém falta. Com ou sem motociclo, vive-se o acontecimento — nem que seja apenas dando um saltinho ao Pontal, indo ver um concerto ou assistindo ao desfile do último dia. Estamos todos presentes. Faz parte.

Em outubro, vai-se à feira de Santa Iria. Cartuchos de castanhas, quentes e boas; cheiro a polvo assado; algodão doce; farturas gulosas; e fugas às aulas, porque os carrosséis só ficam por uns dias — e a escola não se vai embora.

É igualmente um clássico desta bela cidade, ainda que pouco reconhecido e glorificado, a rutura do cano de água da Estrada da Penha. Talvez pareça uma informação vaga, mas não é. Qualquer farense sabe de que cano e de que rutura estamos a falar. Não precisa de cartazes nem de lembretes. A periodicidade é surpresa, para garantir maior efeito junto do público, que, pelas reações — braços ao alto, mãos na cabeça e na buzina —, recebe o acontecimento com enorme excitação.

A equipa da organização, excelente: seis especialistas de coletes fluorescentes contornam o buraco e observam, com ar entendido, um sétimo de que vislumbramos apenas o capacete e o movimento executado com a picareta. Uma cena belíssima que todos observámos em algum momento das nossas vidas. Misteriosamente eterna. E é em vão que procuramos desvendar as causas dessa eternidade. Ah, as múltiplas possibilidades de leitura! A complexidade própria de um clássico que o torna intemporal. O buraco da Penha é o Lusíadas dos buracos.

Mas Faro tem mais para oferecer. O que dizer do clássico dos clássicos? Do mais exuberante, mais extraordinário e, convenhamos, mais instagramável ícone da cidade? Perfeito para o TikTok, alegria das equipas de televisão que ficam sem assunto quando esgotam as reportagens sobre o calor e as bolas de Berlim. Falo, claro, da já tradicional — e sempre fotogénica — inundação em São Luís. Essa velha conhecida que regressa, ano após ano, década após década, sempre que São Pedro se distrai com a rega das plantas.

O evento impressiona pelo número de envolvidos, pelo espetáculo proporcionado e pelo investimento. Senão vejamos: são necessários vários estabelecimentos com móveis e eletrodomésticos — a boiar, definitivamente arruinados — e inúmeros veículos que, se não eram anfíbios, passam a ser. Depois entram os bombeiros e a proteção civil, com sirenes, fardas, vassouras. Grita-se muito — suponho que para afugentar a água. Há ainda os repórteres junto a cada poça, os curiosos e os proprietários desesperados, de calças arrepanhadas, a fazer contas à vida.

Havendo televisão e rádio no local, não podiam faltar os políticos. Ei-los que saltam da toca, ainda a limpar as remelas, estremunhados. Estavam tão bem na cama. Que maçada! E, ainda por cima, é preciso pôr um ar de energia, de quem era capaz de arregaçar agora mesmo as mangas e acabar com isto. Mas os repórteres não os largam, e lá vai uma entrevistazinha para aqui, outra para ali: isto era imprevisível, a culpa foi do anterior executivo, não se repete, as indemnizações vão correr como a água da chuva.

Felizmente, estas ameaças nunca se concretizam. São políticos, pessoas de respeito que percebem a importância de manter a tradição. A autenticidade. O que os turistas gostam de autenticidade!

Não nos alarmemos, pois. Tudo ficará na mesma. O ciclo recomeça agora.

De resto, a minha sugestão é mesmo que nos dediquemos a pensar em provérbios que guardem para a posteridade a memória destes clássicos da capital. Com rima, para entrar melhor no ouvido. Dou o mote: “Em S. Luís, não te afogas por um triz”; “Quando S. Pedro se distrai, o teu carro lá vai”; “Chuva sem parar, carro e dono a nadar”; “Rutura que se preza, faz da Penha Veneza”; “Penha alagada, buzina afinada”.

Sílvia Quinteiro é professora

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