Há experiências para as quais, com a idade, vamos perdendo a tolerância. E hoje sinto-me velha. Muito, muito velha. Cansada. Rabugenta. Confesso estar até ligeiramente agressiva. Eriça-se-me o pêlo. Afilam-se-me os dentes. Garras em estado de prontidão. Olhos a soltar chispas indisfarçáveis.
Pergunta-me o colega a meu lado se aceito um chá de tília. Respondo que talvez um tranquilizante para cavalos fosse mais apropriado à situação. Concorda.
— Dois, então — propõe — um para ti, outro para mim.
Pode soar a exagero, mas convido quem assim pense a ficar dois dias fechado num auditório a ouvir pseudoespecialistas, facilmente agrupáveis em duas categorias: a dos autobiógrafos egocêntricos e a dos especialistas em especialidades.
Os primeiros demoram-se na descrição do seu brilhante percurso académico, certificando-se de que mencionam todos os nomes ilustres com que alguma vez se cruzaram, ainda que tenha sido nos lavabos da faculdade. Prosseguem com o relato da sua notável carreira e, inevitavelmente, com uma alusão discreta à própria genialidade. Havendo tempo, ou, melhor dizendo, se ninguém os interromper, ainda oferecem ao público algumas considerações sobre a família.
Os segundos, por sua vez, detalham até ao limite a estrutura das luminosas comunicações com que nos irão brindar: “é sobre…”, “incide em…”, “resulta de uma investigação realizada no âmbito de…”, “a metodologia aplicada foi…”. E assim se esgota o tempo. Vinte minutos depois, concluem apressados: fica para a próxima. Que pena! Tinham tanto para partilhar!
Ali estamos, sentados, para nada. Rigorosamente nada. Ainda assim, percebemos que podia ser pior. Nas raras incursões por terrenos científicos, há quem faça o pleno: seis conceitos enfiados a talhe de foice na mesma frase, todos mal utilizados. Um autêntico bingo da asneira.
Se a princípio rimos, brincamos, enviamos mensagens uns aos outros a lembrar os bilhetinhos trocados nos bancos da escola, ao fim de algumas horas a coisa perde a graça e, ao segundo dia... tomar medidas drásticas para acabar com a tortura começa a parecer aceitável.
Olho em volta. A ala mais jovem da sala escuta embevecida a oradora que, com o fervor de quem anuncia um milagre, declara a importância dos livros para o estudo da literatura. Brilhante! Revolucionário! Uma epifania sem precedentes! Um ahhhh geral confirma o alinhamento com o génio da academia. Palmas. Muitas palmas! Animada pela plateia, a jovem doutora avança confiante e apresenta a grande conclusão da sua tese: ler é indispensável para conhecer os textos literários!
Quanta sabedoria condensada! Demasiada, diria mesmo. Abro o programa. Constato que me aguardam dois temas de uma pertinência e inovação verdadeiramente extraordinárias.
Estou velha. Velha demais para estas coisas. Digo ao meu companheiro de suplício — um catalão — que, em Portugal, usamos o dito “Quem não tem que fazer, faz colheres”. Ao que me responde com o equivalente na sua língua: “Quem não tem trabalho, penteia gatos”.
Pela janela, observamos o magnífico dia de outono: suave, lento e dourado. Exaustos, abandonamos a sala. Deixamo-los entregues às colheres e aos gatos.
Caminhamos sem destino pelas ruas da cidade, enquanto discorremos sobre a falta de solidariedade ibérica: os portugueses deviam fazer pentes, não colheres.
Sílvia Quinteiro é professora
Crónica publicada em:
