Na próxima semana, tem início para mim, uma das tradições de Natal, que é reunir os amigos e fazer um jantar. Ao contrário dos jantares de aniversário ou de simples convívio, a execução destes é um pesadelo logístico, uma espécie de sudoku social, devido à concorrência feroz dos outros jantares de Natal. Há jantares de amigos, de grupos, de associações, de empresas… em dezembro até o café do bairro faz jantar de Natal para os frequentadores da mesa do canto. Ainda falta um mês e meio para a consoada, mas há quem ache que é agora ou nunca, como se o bacalhau fosse esgotar e os restaurantes fossem engolidos por buracos negros a partir de 15 de dezembro.
O início da discórdia começa com a marcação do dia. Assim que termina setembro (ainda estava eu na praia), começam as primeiras abordagens nas redes sociais:
- “Pessoal, este ano temos de ver mais cedo quando vamos fazer o jantar de Natal!”
E seguem-se duas semanas de silêncio sepulcral. Nem um emoji, só os habituais memes de senhoras com muito calor (não têm possibilidades de comprar roupa, coitadas). Que nem ligamos, apagamos imediatamente, porque o que nos interessa mais é entender o universo, falar de Biotecnologia e Genética.
O amigo insiste:
- “Como é? Fazemos jantar ou não?”
Todos respondem afirmativamente e começa o festival da indecisão. Em outubro não, porque ainda vamos à praia. Em novembro, o dia 10 não pode um, o dia 17 não podem dois. Pondera-se fazer um almoço ao domingo ou um lanche à terça, mas, mesmo assim, não há quórum. Quando tudo parece finalmente resolvido, há sempre um iluminado que diz:
- “Ahhh, esquece… vi mal. Afinal a minha mulher diz que nesse dia não posso”.
E volta tudo à estaca zero. Até que alguém, num rasgo ditatorial de Natal antecipado, decreta:
- “É dia 22 e pronto!”
E pronto. Ninguém gosta, mas todos aparecem.
Se marcar a data é difícil, escolher o restaurante é uma missão para santos com paciência de monge tibetano. Ainda nada está combinado e, como manda a tradição nacional, a decisão final só surge dois dias antes do jantar. Quando se tenta reservar, já está tudo cheio, outros grupos tiveram a mesma ideia «original» de fazer um jantar de Natal… em novembro. Há sempre quem perca a cabeça e diga:
- “Se tivéssemos respondido logo, nada disto acontecia!”
Pois claro. E se a minha avó tivesse rodas, era trotinete. Uns dizem que o restaurante tanto faz:
- “O que vocês decidirem, para mim está tudo bem”.
Tradução: “Não me responsabilizo por nada”.
O organizador, em estado clínico de esgotamento escolhe um sítio qualquer e anuncia:
- “Está marcado”.
Imediatamente começa o interrogatório:
- “Onde é?”
- “Quanto é?”
- “Tem pratos de peixe?”
- “E aceita MB Way?”
Segue-se uma discussão intensa, com GIFs, emojis e palavrões natalícios. Um dos amigos sai do grupo, jurando solenemente nunca mais organizar nada. Aviso aos ingénuos: nunca caiam na ratoeira de fazer o jantar em vossa casa. Todos prometem ajudar a cozinhar e arrumar no fim. Mentira descarada. É um truque sujo, digno de Judas com gorro de Pai Natal.
Chega o tão esperado dia. Os pontuais, também conhecidos como os ingénuos, chegam a horas e juram que para o ano se vão atrasar. Não vão. Um, cancela à última hora com a clássica mensagem:
- “Epá, estou de cama com uma gripe do caraças”.
Tradução: “A minha mulher não me deixa ir porque no ano passado cheguei bêbado e mijei o frigorífico”.
Os resistentes brindam, falam todos ao mesmo tempo e o restaurante transforma-se numa mistura entre tasca, romaria e Assembleia da República, versão “especial 50 deputados do Chega”. Há cânticos improvisados, gritos de “Vai a cima, vai ao centro…” e um ou outro copo que se suicida no chão. Nas mesas vizinhas, há quem siga a tradição do Amigo Secreto: distribuem-se prendas inúteis, perfeitas para reciclar no Natal da família. Só há duas categorias: objetos sem propósito ou brinquedos de cariz sexual (porque nada condiz tão bem com o «espírito natalício» como um par de algemas com pelúcia). Há sempre alguém que desrespeita o valor máximo e gasta três vezes mais. O resultado? Um desconforto generalizado, especialmente quando quem ofereceu um porta-chaves em forma de membro fálico musical (que toca Quim Barreiros sempre que se aperta) recebe em troca um vale de compras na Primark.
Segue-se o banquete: grelhadas mistas, bifinhos com
cogumelos ou o eterno bacalhau com natas a Santíssima Trindade dos jantares de
Natal de amigos. Bebe-se sangria de jarro, discute-se futebol, dança-se mal e,
invariavelmente, há um casal que discute porque “ele olhou para as pernas da
amiga”.
No final, vem a conta, o Juízo Final em forma de papel
térmico. Há quem jure que só bebeu água, quem diga que nem tocou na sobremesa e
o inevitável casal que aproveita o momento para discutir quem olhou para as
pernas da amiga ou da empregada que andava a servir às mesas. No dia seguinte,
ainda se fala das bebedeiras, das danças… Em resumo, das figuras tristes, e
renasce com nova energia o novo tema: “E para a passagem de ano, o que é que
se faz?” A roda da vida gira, mas a amizade mantém-se firme, como o
espírito natalício (muito) antecipado ou o cheiro a vinho de jarro que nunca
mais sai da roupa. E assim, ainda em novembro, já me preparo para os primeiros
dois de muitos jantares natalícios. Quando chegar o Natal verdadeiro, já
ninguém aguenta ver uma rabanada. “Ma que diébe” é Natal, como bom algarvio e
conformado com o caos, lá estarei, sorriso no rosto e um copo na mão, pronto
para brindar à amizade, ao milagre nacional de conseguir juntar pessoas e ao
eterno dom português de complicar o que devia ser simples: comer, beber e rir
Júlio Ferreira é um inconformado encartado
Crónica publicada em:
REVISTA ALGARVE INFORMATIVO #503 by Daniel Pina - Issuu
