Recebi no meu aniversário um livro que li de uma assentada. Há mais de duas décadas que Xinran o publicou, em Inglaterra, e nele narra as histórias de mais de quinze mulheres, que conheceu através de telefonemas e cartas enviadas para si quando era responsável por um programa de rádio em Nanquim, uma importante cidade a Noroeste de Xangai, na China. Saiu no Brasil logo no ano seguinte e chegou até mim em 2025. Ler estes relatos e perceber, como a narradora justifica, pelas experiências que neles se contam, o ter-se sentido obrigada a mudar para o Ocidente, é entrar num mundo de horrores a que as mulheres têm sido – e quantas vezes são, hoje ainda – sujeitas. São histórias individuais, nenhuma igual às outras, mas todas com o poder de fazer ecoar a ideia de Inferno no pensamento de quem, jamais tendo conhecido em primeira mão o terror da submissão, da prisão e da tortura, percebe até que ponto o ser humano é o seu próprio verdugo. Mesmo sendo uma verdade mostrada hoje a todas as horas, por todos os inevitáveis meios de comunicação, perceber-lhe os pormenores relatados na primeira pessoa (o livro dá a voz às vítimas tanto quanto à locutora que as ouviu e procurou) causa um misto de confirmação e incredulidade.

Porquê ler narrativas que documentam o horror? Talvez o primeiro e principal motivo seja uma tentativa de evitar a alienação, de manter o alerta para a capacidade do mal. Mas um outro advém do contacto com o discurso destes relatos: por um lado, porque se trata de histórias cujas narradoras e protagonistas integram realidades que uma leitora ocidental entende como distantes – tristemente, essa distância (também resultante da tradução entre línguas tão diferentes) possibilita um abeirar mais seguro do horror. Por outro lado, porque o ambiente exótico em que se desenrolam não deixa de ser motivo de curiosidade, de interesse. Xinran contextualiza cada narrativa com informações sobre cada uma das entrevistadas – o passado, muitas vezes feliz, que viveram até ao momento do terror, e que apenas exacerba a profundidade do mal; ou a história das cidades ou da organização política do país, que obriga a silenciamentos inexplicáveis. Nenhum dos contextos pode justificar a perversidade. Aliás, a sua diversidade comprova apenas que aquela é universal, intemporal, monstruosa e absolutamente humana.

Em Portugal, estão publicadas, da autora, as obras Mensagem de uma Mãe Chinesa Desconhecida (Bertrand) e O Sol Cai no Tibete (Quetzal).

Ana Isabel Soares é professora

Crónica publicada em:

Foto: Vasco Célio