Há episódios que parecem vir ao nosso encontro com o intuito de despertar memórias que julgávamos adormecidas. São momentos breves, acontecimentos sem ligação, exceto aquela que a nossa mente insiste em traçar entre eles. Aconteceu-me por estes dias. Primeiro, ouvi recomendar um livro de Rui Zink, O bebé que… não gostava de ver televisão. Explicava a livreira tratar-se da história de um bebé que chorava sempre que o sentavam diante do aparelho ligado. Os pais, aflitos com a estranha reação, levaram-no ao médico. No final da história, a criança é colocada diante do ecrã desligado e, ao ver o reflexo da família reunida, deixa de chorar, mostrando saber exatamente o que quer.
Poucos dias depois, uma amiga contou-me que o seu pai cresceu numa aldeia transmontana onde, mês após mês, o grande acontecimento era a chegada da biblioteca itinerante. Ao avistar a carrinha, corria na sua direção, seguido pelo fiel Mondego, que partilhava o mesmo entusiasmo. O menino entrava com a sacola dos livros numa mão e o cartão na outra. O cão seguia-o, a saracotear-se, com a cauda a abanar.
A bibliotecária ralhava e mandava-o expulsar o cão. O pobre animal ficava então à porta, o corpo no lado de fora e o focinho pousado no limiar, tristíssimo.
Assim foi durante cerca de três anos, até ao dia em que o Mondego entrou determinado a ficar. Quando ordenaram ao miúdo que o levasse para a rua, encolheu os ombros e declarou, muito sério, pertencer a outro. O bicho, cúmplice, fez-se desentendido e olhou em volta, como se procurasse o dono. Nenhum dos dois se denunciou.
O cão manteve-se imóvel. Não havia “xô!” capaz de convencer o volumoso Serra da Estrela a arredar pé. Arrastá-lo… impossível. Estava deslumbrado e portava-se lindamente. Rendida à persistência do canídeo, a bibliotecária acabou por lhe fazer um cartão de leitor. Ao lado do desenho do seu focinho alegre, o n.º 576.
Estas duas histórias trouxeram-me à lembrança o meu avô materno. Um homem com uma paciência quase infinita, frequentemente posta à prova pela minha obstinação, que o levava a pôr termo a muitas das nossas conversas afirmando: “A menina é netinha, ainda não sabe nada”. A frase surgia, por exemplo, quando insistia em acompanhá-lo ao café. Esgotados os argumentos — uma maçada para uma miúda, ficava melhor a brincar em casa, logo trazia rebuçados, voltava tarde — restava sempre a mesma sentença.
A idade era pouca, é certo, mas, naquela situação, sabia muito bem o que pretendia: passar tempo com ele, ouvi-lo. Ninguém contava histórias como o meu avô. Mas havia algo para além do óbvio: tinha a certeza de que a minha presença ao seu lado faria com que fumasse menos.
— O tabaco vai ser a tua morte — repetia a minha avó.
O avô resmungava, mas estava consciente da ansiedade que nos causava o velho hábito. Encontrava no café um refúgio. Um lugar onde os olhares e as palavras não o julgavam.
— Quando se apanha sozinho, acende um cigarro com o outro — dizia a avó, desgostosa.
E eu insistia em ir, insistia até ser silenciada. Não me rendia, porém. Em último caso, havia sempre a arma secreta, a única de que nunca se conseguiu defender: um irresistível beicinho.
É assim a teimosia dos inocentes: como uma luz aparentemente frágil, mas que não cede, não se apaga, não desiste.
Sílvia Quinteiro é professora
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