permaneceram um bule azul com um descascado no bico,
uma garrafa de pimenta pelo meio,
um latido e um céu limpidíssimo
com recém-feitas estrelas. (...)
Adélia Prado
“Marly de Oliveira, eu não escrevo cartas pra você porque só sei ser íntima”. É uma frase da Clarice Lispector do seu maravilhoso livro, A Descoberta do Mundo. Não sabia, quando li o livro pela primeira vez, quem era Marly de Oliveira. Fui à procura e descobri que ela foi uma das grandes escritoras/poetas do Modernismo brasileiro. Mas, quando li, ainda sem saber disso, gravei a frase: “Marly de Oliveira, eu não escrevo cartas pra você porque só sei ser íntima”. Não conhecia, na altura, a escritora, mas me conhecia o suficiente para dizer, como Clarice: só sei ser íntima. “O que é que uma pessoa diz à outra? fora “Como vai?” Se desse a loucura da franqueza, que diriam as pessoas às outras? E o pior é o que se diria uma pessoa a si mesma, mas seria a salvação, embora a franqueza seja determinada no nível consciente e o terror da franqueza vem da parte que tem no vastíssimo inconsciente que me liga ao mundo e à criadora inconsciência do mundo. Hoje é dia de muita estrela no céu, pelo menos assim promete esta tarde triste que uma palavra humana salvaria”. Como escreveu Clarice, que diríamos aos outros se fôssemos acometidos pela loucura da franqueza? Limito-me ao “Como vai”, porque, se avanço, entro em águas demasiado profundas e há sempre o medo de não ter volta. Assim, me calo, dizendo muito sem nada dizer realmente. Sem dizer nada de profunda e intensamente meu. A intimidade assusta porque implica divisão e revelação. O que digo a alguém que se abre para mim? Que palavras há para consolar dores íntimas que a mim não dizem respeito? E o que tenho para dar em troca? Pois não se enganem: a intimidade é uma via de mão dupla que exige, para existir, um retorno. E este retorno implica mostrar, às vezes, que não há nada hoje para mostrar. Só um grande e incómodo vazio. É por isso que, há muito, deixei de escrever cartas. E fui fugindo, ao longo da vida, da intimidade. O que me tornava um paradoxo – só sabia ser íntima, mas temia a intimidade. Meus pais sempre nos ensinaram a respeitar o espaço do outro, a demarcar bem fronteiras, a não entrar sem bater antes e a fecharmo-nos em concha. Mas, com o passar dos anos, assumo mais o meu lado “só sei ser íntima”, mesmo quando falo em lugares onde não se supõe a intimidade. Porque me sinto, cada dia mais, como Clarice ou como Adélia Prado – poeta de uma delicadeza extrema, que nunca teve medo de assumir a doçura – qualidade que esquecemos ou pomos de lado: não combina com a nova condição feminina, não combina com o mundo moderno, não combina com este jeito de ser que faz de conta que nada importa e que se pode estar muito bem cercado de gente e absolutamente só. A doçura é um conectivo, é uma liga de ternura que atrai as pessoas, que torna tudo à nossa volta mais sorridente. Piegas, talvez. E é este imenso medo da pieguice que nos torna duros. No filme de Fassbinder, O Casamento de Maria Braun, a personagem, Maria, diz à mãe: as pessoas infelizes acham as pessoas felizes vulgares. A felicidade, assim como a doçura e a capacidade de se deixar ver, não têm o charme cool da melancolia, nem do desespero cinza e preto que veste toda a gente que se diz infeliz. Hoje, só sei ser íntima e afetuosa (na maioria das vezes). Num mundo cada dia mais duro, mais impessoal, ser íntimo e afetuoso tornou-se um ato de resistência.
Mirian Tavares é professora
Crónica publicada em:
Foto: Isa Mestre
