— Conheci o Pedro no Algarve, em 1966, e, depois disso… ah, depois foi um turbilhão. Amor à primeira vista. Nunca mais parámos de nos ver. Diziam que era um amor de verão, mas enganaram-se: casámos em 1968, numa tarde de agosto, no aniversário do nosso encontro. Desejámos intensamente o primeiro filho. Nasceu o João. Um bebé lindo. No ano seguinte, veio a Maria e completou a família. Tem estrelas nos olhos, a nossa menina. Fomos felizes. Muito, muito felizes.
— A senhora é algarvia, D. Isabel? — perguntei.
— Sou. Mas o Pedro era daqui e ficámos cá por causa do trabalho dele. Quando nos aposentámos, voltámos para Quarteira. Foram bons tempos: à beira-mar, sol, céu azul, calor… Aproveitámos bem. Os filhos e os netos iam lá muitas vezes. Dava para ir matando as saudades. Ajudámos a criá-los. São cinco. Uma casa cheia, sabe?
— Foi sempre dona de casa? — questionei, percebendo a felicidade que aquelas memórias lhe traziam.
— Não, não. Cuidava deles, claro. Mas fui professora toda a vida. Adorava ensinar. Nunca quis outra coisa. Ainda agora tenho antigos alunos que me vêm cá visitar, veja lá. O meu marido gabava-me a paciência. Era engenheiro. Vivíamos bem. Até ele partir, coitadinho. Que Deus o tenha em descanso.
Bateram à porta. Um homem, com cerca de trinta anos, espreitou pela abertura, deixando ver apenas parte do rosto.
— Entre — disse — É o neto? Ela disse-me que estava à sua espera. Estou só a fazer-lhe companhia.
Estendi-lhe a mão:
— Mariana. Sou voluntária, aqui no Centro.
— Sou o Artur. Sobrinho-neto. A tia Isabel nunca teve filhos. Sou eu que a venho buscar para passar o Natal.
— Nunca teve filhos? — perguntei, incrédula.
— Não. Mas ela disse-lhe que tinha, não foi?
— Sim, disse.
— E contou-lhe toda a história da vida com o Pedro, que conheceu no Algarve, o casamento, os meninos… que era professora e que o «tio» era engenheiro?
Assenti.
Ele suspirou.
— E deixe-me adivinhar: disse-lhe que a Mariana era um anjo e que a fazia lembrar a mãe dela.
— Sim — respondi, atónita.
Por entre um leve sorriso, explicou-me que a mãe da tia Isabel a espancava. Era alcoólica e expulsara as filhas adolescentes de casa. Ambas sobreviveram como criadas de uma família abastada do Porto. A mãe dele casou e saiu de lá aos dezoito anos, mas a tia ficou até à morte dos patrões: uma professora e um engenheiro, que tinham um filho e uma filha.
Fiquei boquiaberta. A história narrada era tão completa e cheia de detalhes. Tinha-a contado com tanta naturalidade e de forma tão serena… era difícil acreditar que pudesse ser inventada.
— Que triste — murmurei, olhando para ela — perder a memória…
— Não. Nem pense nisso. A tia Isabel está no seu perfeito juízo. E não é uma mulher triste. É uma mulher prática. Apenas decidiu que não ia acabar os dias agarrada a recordações que a magoam. E então escolheu viver com outras memórias. As que gostaria de ter tido. Um rapaz que conheceu na adolescência e com quem gostaria de ter namorado e casado. Os meninos que criou como se fossem seus e que ainda a visitam regularmente.
Aproximou-se da velha senhora, estendeu-lhe a mão e disse:
— Está pronta, avó? Venho buscá-la.
A D. Isabel levantou-se devagar, deu-lhe o braço e caminhou até à porta com o sorriso de quem vive numa história que finalmente lhe pertence.
— Não lhe disse que o meu neto era um belo rapaz? É a carinha do meu Pedro. Feliz Natal, menina.
— Feliz Natal! — retribuí.
Sílvia Quinteiro é professora
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