É Natal em Portimão e no mundo, e, entre luzes cintilantes, Fatias Douradas e Bacalhau, o coração da cidade pulsa com histórias, memórias e risos das crianças nesta época de esperança. Abri com muita emoção a minha prenda antecipada logo no dia 11, dia da cidade, que trouxe consigo centenas de elogios, milhares de visualizações e, em vez de ouro, mirra e incenso, os três reis mag(r)os: Júlio, Rúben e Paulo trouxeram generosas doses de memória, emoção e alma.
Estes, ao contrário dos outros como os três reis há dois mil e vinte e cinco anos. Não seguiram nenhuma estrela. Perseguem um propósito muito mais humilde: celebrar Portimão, guardar a memória da cidade e partilhar a sua essência através do projeto «Mar a Fado», um gesto cultural que é também declaração de amor à cidade, às suas gentes e à sua memória viva.
Amo esta cidade como se ama alguém difícil: que falha, que irrita, que por vezes desilude, mas que chama sempre de volta. Há amores que não se explicam… sustentam se. Portimão é esse amor resistente, salgado, feito de cicatrizes bonitas.
O «Mar a Fado» nasce exatamente daí. Um jogo de palavras com «marafado» (expressão popular algarvia que significa traquinas, esperto, danado, mas de bom coração), evocando ao mesmo tempo o mar e o fado, símbolos profundos da alma portuguesa e algarvia. É o nome perfeito: tem som, alma, humor e verdade; um projeto coletivo, partilhado por três pessoas que, cada uma à sua maneira, sentem por Portimão o mesmo amor inquieto, exigente e profundamente fiel. Não de um conceito importado nem de uma ideia académica, mas daquilo que somos enquanto gente, enquanto cidade. Nasce da memória, da vivência e do receio silencioso de deixarmos de nos reconhecer.
O «Mar a Fado» não se faz para impressionar. Faz-se para reconhecer. Acontece nos lugares onde Portimão ainda respira sem filtros, longe do postal ilustrado, perto da verdade. Lugares onde a cidade se olha ao espelho e ainda se identifica. As pessoas que dão corpo a este projeto não se inventam. Carregam Portimão na pele, na fala, no silêncio. São gente que aprendeu cedo que tradição não é peça de museu: é matéria viva, que se adapta, mas não abdica da alma.
Entre essas figuras-símbolo está Joaquim Oliveira, e, com ele, ecoa o espírito do «Marafado», homem feito de sal, vento e teimosia. Como o marafado enfrentou o mar, Joaquim e a sua família enfrentaram as ondas da vida conserveira, construindo e sustentando Portimão com coragem, trabalho e amor profundo pela cidade. Personagem onde cabe, inteira, a essência de ser portimonense. Em Joaquim e na sua família cruza-se a memória dos tempos áureos da indústria conserveira com a dignidade silenciosa do seu declínio. Ali está o trabalho duro, a ligação ao mar, o orgulho sem alarde e a capacidade rara de resistir sem perder identidade. Não é nostalgia: é reconhecimento. Porque ao falar de Joaquim Oliveira fala-se de milhares que fizeram a cidade crescer, que a sustentaram quando o brilho se apagou e que continuam a habitá-la com a mesma inteireza. Portimão foi, durante décadas, uma cidade moldada pelo som das fábricas conserveiras. Pelo ritmo dos turnos, pelo cheiro intenso do peixe, pelo cansaço honesto que se levava para casa ao fim do dia. Famílias inteiras, como a de Joaquim Oliveira, viveram desse ciclo duro e digno, onde o mar era sustento e a fábrica era escola de vida.
A indústria conserveira não deu apenas trabalho: deu identidade. Criou comunidade, criou solidariedade, criou um modo muito próprio de estar no mundo. Quando o setor entrou em declínio, não foi apenas a economia que sofreu, foi a autoestima de uma cidade inteira. Fecharam-se fábricas, calaram-se máquinas, mas a memória persistiu. O «Mar a Fado» nasce também desse silêncio posterior. Desse espaço vazio que ficou quando o progresso seguiu outros rumos e deixou para trás quem sempre esteve. «Mar a Fado» é lembrar. Lembrar é resistir. E resistir, em Portimão, sempre foi uma forma de amor.
Ao dar voz a estas histórias, o «Mar a Fado» não romantiza o duríssimo e muitas vezes cruel passado de Portimão: olha-o de frente e honra-o. Porque só quem respeita o que custou viver consegue amar verdadeiramente o que hoje existe. E ao fazê-lo, devolve à cidade um pedaço essencial da sua alma, aquele que nunca deveria ter sido silenciado, muito menos esquecido.
E há humor, porque em Portimão nunca se sobreviveu sem ele. Um humor cúmplice, de quem conhece o peso da vida e aprendeu a enfrentá-lo sem baixar a cabeça. Ri-se da dificuldade, da burocracia, das promessas vãs, da própria cidade. Não por desrespeito, mas por pertença. Porque só quem ama verdadeiramente a sua terra se permite rir com ela. Esse humor caminha lado a lado com a memória. O «Mar a Fado» recorda ruas, rostos e vozes que marcaram Portimão ao longo da nossa existência coletiva, gente simples, lugares aparentemente anónimos, mas fundamentais para a identidade da cidade. Ao evocá-los, devolve-lhes dignidade e presença. O «Mar a Fado» sorri também da modernidade apressada, dos projetos sem raiz, das modas que chegam cheias de entusiasmo e partem sem deixar rasto. Sorri porque sabe que Portimão já viu muito passar, e apesar de tudo, permaneceu. Este não é apenas um programa cultural. É também o encontro de três olhares portimonenses que recusam deixar a cidade reduzir-se a cenário: três vozes diferentes, unidas pela mesma urgência de preservar a memória, a identidade e a dignidade cultural de Portimão. É um gesto de resistência afetiva. Uma afirmação clara de que a identidade não se decreta, constrói-se. Ser portimonense não é um slogan, é um percurso.
O «Mar a Fado» é a cidade a cantar-se a si própria, sem pedir licença. Com verdade, com memória e com sal. Enquanto Portimão tiver quem a cante assim, com humor, com coragem e com amor, continuará viva. E enquanto houver quem escreva, cante e pense a cidade com esta entrega, este programa continuará a regressar, mês após mês, para lembrar que Portimão não é apenas um lugar: é uma pertença. Talvez ferida, talvez injustiçada, mas viva.
E enquanto o MAR murmurar segredos e o FADO emoção, há de pulsar em cada peito, o nome de PORTIMÃO.
Júlio Ferreira é um inconformado encartado
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