O que acontece quando um amante de livros – além do mais, bibliotecário profissional – assenta e oferece a quem as quiser ler as memórias que guarda de uma cidade tão literária como Paris? Refazem-se percursos mnemónicos, relembram-se passeios, ruas que se guardavam no lampejo de um pensamento e se glorificam na luminosidade multiplicada por cada uma das leituras. Na mente de cada leitor das lembranças que João B. Ventura recolhe e fez publicar em O Flâneur de Paris, revive a cidade e as suas esquinas, os passeantes com que se cruzou nos anos 70 ou que imaginou a habitá-la cem anos antes. “A rua conduz o flâneur a um tempo já desaparecido”, escreveu Walter Benjamin em Passagenwerk, o monumento a Paris que construía e deixou por terminar (a versão em língua portuguesa é de João Barrento). Prosseguia: “Para ele [para o flâneur], qualquer rua é íngreme. Desce [...] até um passado que pode ser tanto mais atraente quanto menos for seu, privado” (p. 544 da edição da Assírio e Alvim). Ventura (ventura de quem lê) tem a generosidade de transformar em coletivo aquilo que começou por ser o seu passeio privado pelas ruas parisienses – o passeio literal, caminhado sobre les pavés da cidade-Luz, e o metafórico, aquele que lhe viajava pelo pensamento na recordação dos versos dos poetas (como Charles Baudelaire, como Paul Verlaine) ou em episódios das vidas de outros escritores (mais sombrios, como o de Paul Celan, ou mais festivos, como na imagem que convoca de Julia Kristeva e Philippe Sollers a dançar na praça da Bastilha ao som da Carmagnole (celebrando a reeleição de François Miterrand).

É uma bela leitura, esta, para fazer nos dias em que as livrarias parisienses (se) vão encerrando, em que grande parte dos passeantes da Paris de hoje voltam o olhar para a montra dos seus próprios aparelhos eletrónicos e passam ao lado dos espelhos que são os altos vidros das lojas dentro das passages, olho crítico que foi de uma certa sociedade que se entendia, que se revia e analisava. Os estilhaços do presente são demasiados para oferecer uma imagem única, um entendimento sereno; o ruído é poderoso. A cidade, porém, parece resistir – o passeio do venturoso flâneur nestas páginas, que se leem com o fôlego de uma tour aprazível, dá a ver um vislumbre, nostálgico, é certo, da Paris de ontem, ou do passeante que a lembra como se continuasse lá.

Ana Isabel Soares é professora

Crónica publicada em:

Foto: Vasco Célio