O horror, o horror!
Joseph Conrad

Às vezes tenho a sensação de que indignar-se é um dos verbos mais ouvidos, usados, sentidos dos últimos tempos. A verdade é que há tanta coisa que nos provoca a indignação, que fica difícil ordenarmos as ideias. Já não se fala da Guerra na Ucrânia, mas esta não cessou, fala-se muito, e bem, do horror genocida que se abate sobre a Palestina, da inação dos governos que não se movem para tentar, de alguma maneira, estancar essa ferida aberta e purulenta que a humanidade vai carregar por muitos anos. A parte da humanidade que tem empatia e consciência, claro. Há ainda os horrores cometidos por um desvairado com grande poder – líder da nação mais colonialista das últimas décadas. Nem o filme de Truffaut, Farenheit 451, chegou tão longe. Nem os mais disparatados romances e filmes distópicos conseguiram imaginar que a realidade ia superá-los largamente. Combate-se, de forma sistemática e programática, a cultura e a educação. Combate-se o saber. Na Dialética do Iluminismo (ou do Esclarecimento), Adorno e Horkheimer analisam o outro lado da moeda de uma racionalidade teleológica e, de alguma maneira, excludente. Já quase ninguém lê os frankfurtianos, já quase ninguém lê. O séc. XX foi marcado pelo cientificismo, até meados, e pela desesperança, após Hiroshima e Nagasaki. A racionalidade torna-se um discurso a mais, como a História. A ciência na sua certeza e a História, baseada em factos, foram desmascaradas porque descobriu-se que também elas são relativas, também elas estão do lado dos vencedores. Inauguram-se novos discursos, mais includentes, mais diversificados, no entanto, a fragmentação do discurso e a descrença na razão também nos trouxe um renovado misticismo, novas e velhas crenças foram convertidas em discursos de verdade, e andamos, neste momento, a tentar sobreviver aos fragmentos, a tentar driblar os discursos que circulam, e que ganham adeptos, apenas porque sim. Apenas porque o lado mais bárbaro dos humanos veio ao de cima e tem se alastrado. A mesquinhez, a inveja, a falta de empatia e o narcisismo patológico tornam-se dominantes e guinamos para uma direita extremada e burra. Mas a ignorância deixou de ser uma vergonha e passou a ser uma medalha que alguns adoram exibir. Em nome da liberdade de expressão, os discursos de ódio circulam livremente. As pessoas lutam contra a corrupção dos governos instalados e querem instalar novos governos compostos de pessoas que cometem e cometeram crimes mais graves, a meu ver. Pedófilos, ladrões, fascistas de carteirinha que passam do discurso à ação. E nós seguimos nos indignando. Já se tornou clichê dizer que a Esquerda precisa se reinventar. Mas a verdade é que ainda não se reinventou. E é urgente uma mudança que nos salve da catástrofe do barbarismo. Que nos salve da ignorância que se jubila e se exibe. Que nos salve de nós mesmos.

Mirian Tavares é professora

Crónica publicada em:

Foto: Isa Mestre