Tendo estado de férias com a família em Milão, a maioria das refeições, naturalmente, foram efetuadas nalguns dos múltiplos e variados estabelecimentos de restauração da cidade. Como não poderia deixar de ser, privilegiámos os restaurantes especializados na comida italiana. Não houve, por isso, muitos pratos de massa e de pizza que não tivéssemos experimentado e degustado. Houve um restaurante, no entanto, que se destacou dos outros, não tanto pela qualidade da comida (que a tinha!) mas pelo trato, profissionalismo e afabilidade dos funcionários com quem tivemos o prazer de contactar.

Depois de muito calcorrearmos as apinhadas ruelas de Navigli para tentar descobrir um restaurante o menos turístico possível, não muito longe descobrimos um onde os cânticos e vivas na língua materna indiciavam haver uma qualquer comemoração de aniversário. Logo à entrada, o forno de lenha presenteava e espalhava pelo amplo espaço o aroma a pão acabado de fazer. Cativou-nos o sorriso franco e as boas-vindas dadas num italiano melodioso e respeitoso pela (viemos a saber) gerente/dona do estabelecimento. Depois de termos combinado a língua de comunicação e de menu (o inglês), encomendámos o repasto a um solícito e simpático funcionário. Sabendo da tradição vitivinícola de Itália, quisemos acompanhar a refeição com um vinho da região da Lombardia. Depois de escolhido um tinto que aparentava uma boa relação preço/qualidade, o funcionário alertou-nos que o vinho possuía características frisantes. Tendo reparado na minha expressão facial, imediatamente se ofereceu para recomendar um vinho da sua região natal, a Sicília. Ao contrário do que seria de esperar, trouxe um que não estava na carta de vinhos, exatamente pelo mesmo preço, não se aproveitando de sermos turistas para assim inflacionar a refeição. O jantar fluiu e a deferência e a simpatia com que o mesmo tratava os clientes, a maioria autóctones, mereceu da nossa parte a melhor atenção. Tendo-se, inclusive, oferecido para registar o momento em fotografia, naturalmente expressei-lhe a minha satisfação pelo decorrer da refeição, referindo a diferença com o que tínhamos vivenciado quanto ao entendimento nos dias anteriores. Perentória e orgulhosamente, respondeu-me num italiano carregado e pleno de significado: “Siamo tutti una famiglia!”.

Sendo a comemoração do vigésimo quarto ano de namoro com a minha mulher, foi com agrado que, para além do serviço de mesa pago à parte, merecidamente, gratifiquei o profissionalismo, a entrega e a simpatia duma família que através dos «comes e bebes» dignifica a cultura de um país. No fundo, é esse o meu conceito de família: um coletivo de pessoas que para além de terem ancestrais comuns, laços de parentesco, afinidade ou adoção, agem em conformidade, desempenhando um papel crucial na formação e desenvolvimento dos indivíduos e proporcionando apoio emocional, social e económico sempre que necessário.

Para além das famílias poderem variar culturalmente e extravasarem o conceito de família de sangue, as relações familiares podem ser complexas e multifacetadas, envolvendo várias dinâmicas comportamentais. É importante salientar que o conceito de família está em constante evolução, refletindo mudanças nas estruturas familiares e nas normas sociais. A compreensão e a valorização da família variam amplamente ao redor do mundo, por isso, tendo estado na Itália a degustar um «rosso» siciliano, lembrei-me dos pilares desta região autónoma tão comummente associada ao berço da máfia (cosa nostra): a centralidade da família, a grande extensão familiar, as tradições e celebrações familiares, o respeito pelos anciãos, a culinária e reuniões em torno da mesa, a solidariedade familiar, as tradições religiosas e a honorabilidade e reputação familiar. No fundo, são estes os alicerces de vida daqueles que prezam e defendem a família como um garante de bem-estar, paz, prosperidade e felicidade. Garantidamente, são esses os meus valores. Daí sentir que, para além do sangue, tenho várias famílias. E vós, achais e sentis o mesmo?

Paulo Cunha é professor

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Foto: Daniel Santos