Demorei mais de um ano a ler A Eliminação, relato do cineasta Rithy Panh redigido por ele e pelo escritor Christophe Bataille. Li-o muito devagar, só poucas páginas por dia – às vezes nem uma completa. Só conseguia lê-lo no começo do dia, apanhando-me quase desprevenida, ou nos momentos em que a clareza das ideias e a força do espírito se preparam para ser distraídas e entregar-se à perda – mas que, por isso mesmo, se aguçam. A violência descrita é demasiado crua, a sua narração igualmente cruel, sem condescendência: Pahn é hoje um cineasta respeitado. Vive e trabalha em França, onde se refugiou depois de ter perdido toda a família, ainda jovem adolescente, durante o regime de Pol Pot no Cambodja. O que conta em A Eliminação não tem apenas o desenho do conflito político, de um regime ou de uma ideologia: centra-se nos dias e nos atos de sobrevivência, na angústia e na indiferença. A autobiografia (lembranças adultas já distanciadas dos doze primeiros anos de vida) intercala – ou é intercalada – a fixação de uma entrevista que Pahn realizou ao diretor do campo de extermínio S21. Duch, um dos responsáveis por atrocidades cometidas em nome do regime, ganha voz e humanidade (a voz que Rithy Pahn reconhece não ter sido um direito das vítimas daquelas brutalidades): o que leio é às vezes o riso de um monstro, às vezes o silêncio de um homem; as frases vazias de um burocrata que obedece cegamente a uma ideia de regime ou as perguntas devolvidas ao entrevistador, em desafio inteligente e estudado. Não saí incólume deste livro, que me custou ler, mas que agradeço ter sido escrito.

Em contrapartida, a experiência de ouvir Paula Neves e Maria João (a «John») a descrever as histórias de «true crime» no podcast «Parecia Tão Boa Pessoa» consegue levar-me às lágrimas. Também não é coisa que seja capaz de ouvir depois do cair da noite – mas a abordagem que ambas fazem dos casos (horrendos) descritos é de ligeireza e coloca-me no conforto do som daquelas duas pessoas, entre o divertida e o indignada, menos vezes assustada, e a aceitar a incredulidade de saber que existem, existem mesmo seres «humanos» terríveis que, por circunstâncias mais ou menos explicáveis (narrá-las não implica que sejam justificação, de facto), perdem qualquer réstia de empatia e deixam de reconhecer em si mesmos a semelhança com os outros.

Os instantes em que permito ao cérebro absorver os relatos de terror, do incompreensível tenho de os acompanhar com torradas, chá, queijo fresco, um dia ou outro uma compota demasiado doce – preciso de me permitir a convivência impossível entre o horror e o conforto, se quero aceitar o confronto com aquilo que sempre me parece uma impossibilidade.

Ana Isabel Soares é professora

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Foto: Vasco Célio