Portugal é, tradicionalmente, um país onde nada pode ser analisado e discutido no tempo certo. Os resultados eleitorais das últimas Eleições Legislativas fizeram-me recordar, por analogia, o que acontece na época dos incêndios, que flagelam um pouco por todo o país: ninguém se preocupa em olhar para o território florestal como um todo, limpá-lo, organizá-lo por parcelas, criar barreiras de contenção, diversificar espécies, evitar o crescimento de matas densas. Toda a gente sabe que tudo isto terá de ser feito para termos menos incêndios, mas ninguém faz nada para que tais medidas sejam implementadas. Por isso, quando chega o Verão, os portugueses andam com o coração nas mãos a pedir a proteção divina para que não haja incêndios nos arredores das suas casas e, invariavelmente, ano após ano, assistimos ao drama de quem tem de arriscar a vida para proteger o que é seu. Depois, enquanto o país está a arder, ninguém pode falar nas causas, porque a concentração de todos tem de estar no combate; no final do incêndio não vale a pena falar nas causas, porque o que era para arder já ardeu…
O cenário político português transformou-se numa destas florestas caóticas, que arderá eleição após eleição. Não é por falta de todos sabermos que Portugal está dividido em duas realidades paralelas: o paraíso dos políticos e a realidade da população anónima portuguesa. Aqueles que estão sentados nos gabinetes, analisando e governando o país a partir de escalas macro, esquecem-se que esse macro é composto por treze milhões de micros, entre eleitores, portugueses ainda sem capacidade eleitoral e estrangeiros. Esquecem-se, igualmente, que os quadros macro não conseguem mostrar que este retângulo chamado Portugal tem uma divisão natural, chamada Tejo, que divide o país populoso, industrial, das oportunidades e dos serviços, do quase desértico, rural, abandonado, sem investimento nem perspetivas de futuro.
Este meio país mal representado (sem o distrito de Setúbal elege 17 Deputados num universo de 230 e com o distrito de Setúbal, ou seja, contabilizando precisamente este meio país, são 36 Deputados), sem voz, sabe que, enquanto mantivermos este modelo político, será sempre marginalizado, esquecido, desinvestido, desértico e sem futuro. Nenhum Governo, seja de que partido for, se tiver de optar entre gastar 250 milhões de euros num hospital em Lisboa, no Porto, ou em Braga, ou o mesmo valor num hospital no Alentejo ou no Algarve, dará prioridade a estas últimas regiões, porque, acima de tudo, está a garantia da reeleição e a manutenção do poder. Quem fala no hospital, pode falar nas vias de comunicação, nos transportes, na salubridade, nos serviços públicos e, por arrastamento, nos próprios investimentos privados.
Recordo-me de que, quando andava no ensino secundário, o meu professor de economia dizia frequentemente que se os turistas votassem, o Algarve seria uma Riviera. Os turistas não votam. Da mesma forma que os imigrantes, que têm sido chamados, ou que por iniciativa própria têm vindo para Portugal povoar as regiões que foram ficando despovoadas por falta de investimento, também não votam.
Aqueles que efetivamente votam, eleição após eleição, são confrontados com os mesmos dilemas dos incêndios. Podem confiar na sorte e esperar que não arda, ou tomar uma atitude prática para garantir que não volta a arder.
A maioria do eleitorado deste meio país já se manifestou, mais do que uma vez, no sentido de que quer a implementação de medidas concretas que evitem «que volte a arder», ou seja, querem que estas regiões recebam do poder central a atenção que merecem e recuperar das décadas de atraso provocado pelo desinvestimento. O Tejo tem servido de travão a este incêndio que deflagra e se agiganta, com contornos cada vez mais enegrecidos, mas, com ventos de Sul, não está fora de questão que trespasse essa barreira natural.
No início de Outubro, pela primeira vez desde o início deste grande incêndio político, o eleitorado será chamado a se pronunciar sobre a gestão do seu próprio quintal, ou condomínio. Os efeitos deste panorama nacional no poder autárquico são ainda desconhecidos e imprevisíveis. Uns municípios estarão mais limpos, outros contaminados por maior matéria combustível, mas, para já se adivinha que o incêndio propague, deixando muitos municípios sem condições de governabilidade, uma nova realidade a que a política portuguesa terá de dar resposta.
Não será mais fácil olhar para o problema de frente, tratar dos micros, dar condições de vida ao país real e evitar incêndios, do que andar a fazer rescaldos inconsequentes?
Nuno Campos Inácio é editor e escritor
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